CAPÍTULO 38
Visitei algumas vezes o Egito subindo o Nilo, partindo do Cairo até chegar de barco a Luxor, a monumental capital religiosa dos faraós. É um percurso de uns sete dias, e o barco sempre faz escalas, momento em que os turistas têm a oportunidade de visitar os magníficos monumentos dessa fascinante civilização. Na última escala de uma dessas viagens, atracamos em Luxor no fim da tarde e aproveitei para descer, acompanhado por um guia, e me sentar num café, em uma pequena aldeia próxima à cidade.
A brisa estava fresca e eu descansava prazerosamente do calor pesado do dia, distante do movimento dos turistas, bebendo um chá cercado pelos habitantes do lugar, que fumavam seus narguilés, e conversando tranquilamente, apesar do movimento das cabras e das crianças, que circulavam incessantemente.
De repente, uma banda de uns 15 componentes parou em frente ao café, tocando uma música magnífica, cuja melodia era, sem a menor dúvida, de origem árabe, porém com um acompanhamento rítmico que me surpreendeu, por ser muito similar ao nosso samba de roda da Bahia. Ao retornar à noite para o barco, contei para a guia que nos acompanhava na viagem, uma professora de história da Universidade do Cairo, da minha surpresa com a semelhança entre os dois ritmos. Para meu espanto, a guia contou que não era tão surpreendente assim, pois até o século IX vivia, no que é hoje o sul do Egito e o norte do Sudão, um povo chamado iorubá, que, ao perder uma guerra, foi obrigado a fugir e atravessou a África, até chegar à Nigéria trezentos anos mais tarde, no século XII, não mais como povo, por ter se disseminado no percurso, porém como tribo, sendo os homens negociados tempos depois pelas tribos locais como escravos, com destino ao Brasil e a Cuba.
Então, voltando ao Festival de Montreux alguns anos depois, estava almoçando no restaurante do cassino com Maria Bethânia, Paulinho da Viola e Jorge Ben Jor, numa tarde de ensaios da “noite brasileira”. O restaurante ficava estrategicamente entre as salas de jogos e a entrada da sala de concerto, de modo que os artistas iam para o ensaio e depois saíam diretamente para descansar no hotel antes do show. Em um certo momento, encontrei-me sozinho na grande mesa, tomando um último copo de vinho, quando Dr. John entrou — sozinho também —, procurando uma mesa.
Sentou-se, fez seu pedido ao garçom, e eu fiquei observando aquele importante personagem vindo direto de New Orleans, mistura de branco, negro e índio, impressionante pianista, compositor e arranjador, um dos últimos “monstros sagrados” daquela cidade. Exercia sobre mim mais um fascínio todo especial, pois Dr. John havia praticado piano na década de 1930 observando um senhor chamado James P. Johnson , ídolo da minha infância.
Pianista de grande talento, James P. Johnson era considerado um dos músicos que, na juventude, arquitetaram a passagem do gospel — música sacra — para o que viria a ser o jazz — música profana. Quando adolescente, eu havia comprado na França os poucos discos de 78 rpm do James P. Johnson que podiam ser encontrados, e que eu perdera nas peripécias da vida. Seus discos já não se encontravam mais à venda nem tocavam nas estações de rádio especializadas, nem na França, muito menos no Brasil ou no México. Ou seja, nunca mais eu tivera o prazer de ouvir aquele músico tão importante na formação do meu universo musical.
Bem no meio do restaurante vazio, havia um baby grand piano. Pensei que seria uma oportunidade única. Tomei coragem, levantei-me, apresentei-me ao Dr. John, contei em poucas palavras a importância do James P. Johnson na minha vida, e pedi que tocasse pelo menos alguns compassos, para matar aquela minha saudade... Dr. John levantou sua enorme carcaça e não se fez de rogado!
Tocou por mais de trinta minutos e, ao final, como eu lhe agradecia comovido, perguntou-me se, sendo brasileiro, a música crioula da Louisiana me era familiar:
— Sim e não. Já ouvi o trabalho de vários artistas. Porém, eu estou longe de ser um entendido...
Aí, o homem começou a tocar várias músicas crioulas, quando no refrão de uma delas voltava como se fosse uma prece a palavra “Xangô”! Aí, intrigado, perguntei:
— Dr. John , será que este “Xangô” é o mesmo que o nosso, no Brasil, ou entendi mal? De onde vem?
—Você não sabia que nós, iguais a vocês lá na sua terra, descendemos em grande parte dos iorubás?! — respondeu ele.
Nesse momento, sua comida e seu vinho haviam chegado. Ficamos em silêncio um tempo, agradeci muito emocionado e, não tendo mais o que dizer, me despedi. Fui andando até meu hotel, à beira do lago Léman, pensando nos sofrimentos dos iorubás, ao perderem sua gente e suas terras nas agruras que devem ter suportado durante aquela travessia de trezentos anos. E, mais ainda, mal chegados à Nigéria, serem vendidos para os portugueses, espanhóis e franceses. Será que todas aquelas dores foram necessárias para que tivessem o privilégio de fecundar três das mais importantes músicas que admiramos hoje no mundo — o samba no Brasil, o “el son” em Cuba e o blues em New Orleans?
Eu ia do México para Montreux e minha comadre Mapita foi me levar de carro para o aeroporto:
— Toma esse envelope, tem um pouco de maconha para alegrar os dias de festival — disse ela, ao mesmo tempo em que me enfiava o envelope no bolso do paletó.
Já no avião, coloquei o presente numa bolsa que usava para carregar LPs, sem a menor preocupação com a alfândega suíça. “A alfândega nunca me parou para revistar minhas malas. Além do mais, quando aterrissar, vou entrar numa fila com vinte músicos à minha frente e outros vinte atrás, chegando de vários lugares do mundo... Se o pessoal da alfândega for revistar alguém, vai ser um deles e não eu...”, eu pensava.
Mal sabia eu que, justamente naquele ano, o governo suíço havia determinado que nenhuma droga entraria no Festival de Montreux. Entrei na fila da imigração com os músicos à minha frente e atrás de mim, conforme previsto. Porém, logo vi que, na imigração, os fiscais revistavam todo mundo: jovens, velhos, homens, mulheres, músicos e não-músicos. Abriram a minha primeira mala, revistaram camisa por camisa, abriram a segunda mala, revistaram sapato por sapato, revistaram uma pasta 007, que continha documentos de trabalho, revolvendo página por página, e, por fim, chegaram à bolsa de LPs, que retiraram um após o outro, olhando cuidadosamente dentro das capas. Por fim, só restava o envelope dentro da bolsa. Eu já imaginava algum jornal publicando na primeira página: “Escândalo! Um diretor da Warner foi preso na Suíça por carregar maconha.” O fiscal viu o envelope, mas não o pegou, colocou os LPs na bolsa e a fechou.
— Muito bem, pode passar. E desculpe o incômodo…
Claude Nobs havia prevenido todos os participantes do festival. Mas ele não havia me encontrado no México. Para resolver aquela dramática penúria, Herbie Mann, então diretor artístico do festival, alugou na França um helicóptero que aterrissou em Montreux sob os aplausos entusiasmados dos músicos, largou um estoque adequado de drogas e voltou rapidamente para a França.
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