Um outro carnaval dentro do carnaval pernambucano
Por Joaquim Macedo Júnior
Sim, camarotes chiques, infra-estrutura, ar condicionado, regabofe, bebidas, com desembolso de bufunfa a granel, para fazer parte de um carnaval dentro do Carnaval. Era uma vez o Carnaval do Recife; outrora houve o Carnaval de Olinda. Já me adianto: não venham com argumentos de que quero parar no tempo, frear a folia e não avançar no que as novas tecnologias e os avanços na qualidade sonora, por óbvio, trazem.
Aqui não se trata disso. Estou afirmando como folião, treinado nas ruas estreitas e tortuosas do bairro de São José e nas ladeiras quentes de pedras, de sol e de musicalidade da cidade alta de Olinda.
O carnaval de Pernambuco está sendo estuprado por uma turma medonha, encabeçada por um indivíduo que não tem história, não tem passado – deveria falar com o escritor angolano Agualusa – e resolveu engabelar todo mundo que, de uma forma ou de outra, o está auxiliando a ficar muito rico, numa trucagem em que vende camarotes e outros lotes, em troca do típico carnaval pernambucano, num arremedo de alegria.
Ancorado em emissora de rádio, amigo de colunistas e “bloguistas” lidos pelo high society” recifense e infiltrado nos locais mais badalados da cidade, com o dom da ubiqüidade, essa figura nefasta e seus asseclas – sim porque ninguém faz um estrago deste sozinho – vagueia pelos mais sombrios conluios e acertos para a expansão do seu negócio – a venda da marca do carnaval de Pernambuco (incluam-se, além de Olinda e do Recife, Bezerros e Vitória de Santo Antão), com uma penca de shows e atrações musicas, desde a mulher-felicidade, a carioca Claudia Leitte, Naldos e até o bom Rappa, fora de lugar. É um verdadeiro Johnny de Pernambuco (do filme “Meu Nome Não é Johnny”). Compará-lo ao personagem de Di Caprio, em “Prenda-Me se For Capaz” seria muito para seu caminhãozinho de picaretagens – Abagnale Jr. era outro nível.
Os camarotes, repartidos entre os turistas embasbacados e os janotas da classe média recifense e dos emergentes, “filhinhos de papais ricos” ou ricos de papais mortos, aproveitam-se destes gigolôs culturais para não ter contato direto com a massa. Não se misturarem ao suor do folião, que ainda tenta correr atrás das orquestras de frevo, das alfaias dos maracatus, dos blocos líricos, dos caboclinhos.
Estamos apreciando de camarote a “salvadorização” do nosso carnaval.
Tragam artistas de onde quiser, de quaisquer ritmos e gostos, da origem mais suspeita possível, mas não maltratem tanto assim o carnaval. A festa de Pernambuco, ao contrário do que infelizmente já acontece em Salvador, não é uma suruba musical, não. Tem uma linhagem, tem uma tradição, tem um passado de lutas e, se cuidar a tempo, terá um futuro igualmente belo, original e sempre atraente.
Quando em 1978, Enéias Freire, ‘seu Neinha’, surtou e inventou o “Galo da Madrugada”, muitos talvez não saibam, mas ele, ali na rua padre Floriano, estava dando um grito de socorro, que pretendia despertar povo, autoridades, promotores, brincantes do carnaval e, principalmente a sociedade, num alerta de que o sinal já havia passado do amarelo. Estava vermelho para nossas cores e tradições e à nossa maneira própria de fazer a festa. Lembro que, nos primeiros anos, o “Galo” saía com os estandartes de frevo dos principais clubes e troças de nosso carnaval (não sei agora, não dá para ver).
Em 1995, aquele diminuto mas barulhento grupo tornou-se o maior bloco carnavalesco do mundo (com registro no Guiness Book). Hoje, o “Cordão da Bola Preta”, do Rio, teria superado esse recorde, o que em nada muda o contexto. Mas, veio o frenesi, o apogeu, a política dos trios e seus artistas principais, autoridades, a mordida dos políticos profissionais, numa agremiação tão grande que nem se sabia mais onde era o começo, nem onde terminava o seu fim. Calypso tirou o frevo da avenida e passou a ser atração. Aí, não!
Hoje, prefiro ver o “Galo” pela tevê: é muito bonito quando está apto a ser fotografado na passagem da ponte Duarte Coelho, saindo da Concórdia, com Guararapes, barcos e lanches no Capibaribe e o galo empinado flutuando nas águas do rio.
Não, não aves da rapina da tradição e do bom gosto, nada tenho contra o novo e o moderno, desde que não venham substituir o que é consagrado e bom – o modismo.
Aliás, como bom pernambucano, não temo expressar hipérboles para designar nossa mania de grandeza, muitas vezes um contraponto de uma visão histórica terceiro-mundista. O fato é que a renovação da música, tanto quanto da cultura nos outros universos da artes em Pernambuco, sempre foi um valor permanente, que correu paralelo ao repertório padrão.
Quando penso em Neinha, lembro que, naquele mesmo carnaval, vi o maracatu Leão Coroado, fundado em 1863, com a maioria de seus adereços rasgada e puída, era de chorar.
Se ficarmos a buscar registros de fundações dos clubes do Recife e de Olinda, chegaremos a números intermináveis e datas longínquas, todas com histórias de lutas e glórias urdidas pelos trabalhadores, que tirando o nome de seus ofícios, fizeram do carnaval sua representação lúdica de associações de operários, tais como Clube das Pás Douradas, Vassourinhas, Lenhadores, Lavadeiras de Areias, Pão Duro, Toureiros (Katarina Real, Leonardo Dantas).
Se inovar e estar em consonância com seu tempo ou, mais ainda, buscar novos e surpreendentes sons, atrás do moderno bom, acima da moda, comercial e fugaz, é tarefa de vida, nossa terra nunca ficou a dever.
Quando os Quintetos Violado e Armorial e a Banda de Pau e Corda começaram a tocar músicas de outros carnavais e inventar novos acordes para as anuais aparições carnavalescas, Recife e Olinda mostraram que estão à frente, sem cabrestos, nem saudosismos, mas caminhando com a modernidade, sem perder a essência.
Alceu fez isso; Elba fez; Chico Science reiniciou; Orquestra da Bomba do Hemetério faz; releituras belíssimas de mestres da música popular, como Hermeto, Sivuca, Guerra Peixe. Sem falar nesta estupenda Orquestra Spock, que vive a excursionar mundo afora mostrando um frevo, que pensam ser jazz. Se não bastasse, temos uma reserva de verdadeiros mestres da brincadeira, como Nóbrega, Silvério e Siba, artistas maravilhosos que não só compõem e brincam como pesquisam e trazem sistematicamente o novo para nosso carnaval, nossa música. Quando cito estes, presumo que saibam que Pernambuco é a terra de Capiba, Nelson Ferreira, Luiz Bandeira, Felinho, Antonio Maria, Lula Queiroga, Carlos Fernando etc.
Os cenários são os mesmos e até mais organizados. A idéia do ‘Carnaval Multicultural’, que gostaria de abordar em outra ocasião, tem se mostrado eficaz até certo ponto, com a descentralização dos pólos de apresentações, beneficiando o folião dos arrabaldes.
Enfim, para encerrar e abrir o assunto para que o público passe a refletir mais seriamente sobre a questão, quero reiterar o alerta: estão açoitando o carnaval pernambucano, sua dança, sua coreografia, sua alegria e espontaneidade. Física e filosoficamente.
Quem quiser camarote com ar condicionado, bebida e mulheres à mão não precisam se deslocar para o Recife ou Olinda. Basta que simulem esses camarotes nas suas cidades e paguem cachês aos seus empresários, digo artistas favoritos.
Os daqui já sabem o que fazer, porque barulho, misturado com cerveja, cachaça e orgia se promove em qualquer lugar. Inda mais com muito dinheiro.
Salvem o carnaval pernambucano de sua iminente “salvadorização”.
Excelente postagem.
ResponderExcluirO Carnaval pernambucano está em decadência e precisa de resgate urgente.