Grupo São Doidão faz neste sábado show de lançamento de disco, no Cine Theatro Brasil Vallourec. Arte é instrumento de diálogo entre centros de convivência em saúde mental e usuários
Por Ailton Magioli
Aos 50 anos, seis dos quais em tratamento no Centro de Convivência de Saúde Mental do Bairro São Paulo, Região Nordeste de Belo Horizonte, a decoradora Janice Teixeira diz ter descoberto que cantar é um ato de amor e prazer, através do qual extravasa o nervosismo. Integrante do grupo vocal São Doidão e diagnosticada como esquizofrênica, a fã de Pink Floyd e Nando Reis admite que, além de passar pelo que chama de loucura, a música é um canal para ela entender a própria doença.
Música, teatro, dança, artes plásticas e outras manifestações artísticas sempre foram utilizadas para tratamento de portadores de distúrbios mentais, que elegeram 18 de maio como marco da luta antimanicomial. No Brasil, o movimento acabou desaguando na Lei Paulo Delgado (Lei 10.216), de 2001, responsável pela transferência do tratamento em instituição hospitalar para uma rede de atenção psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos. Em BH, elas são nove: uma em cada regional da capital.
Da experiência nasceram iniciativas como o Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados (teatro) e Trem Tantã (música), além do São Doidão, integrado por portadores e não portadores de sofrimento mental, cujo arranjador é o maestro Helvécio Viana, que trabalha nos centros de convivência dos bairros São Paulo e Pampulha. “Estamos falando antes de tudo de gente. Gente que traz para os centros de convivência a experiência que teve com arte em alguma fase da vida”, pondera Helvécio, lembrando que, de alguma forma, todos os integrantes do São Doidão tiveram um pé na vivência musical.
“No nosso caso, ela apenas não era estimulada”, acrescenta, lembrando que ele teve de começar o trabalho pelo processo de formação do grupo vocal. “O foco é a voz, mas alguns trazem instrumentos também”, afirma o maestro, que leva seu violão para o São Doidão, enquanto João Paulo e Felipe Gaspar se responsabilizam pela flauta doce e Nando Araújo pela recém-introduzida percussão, além da bateria e violão.
Coletivo
Se no início eram cerca de 18 integrantes, hoje, até por causa do estado de saúde de alguns deles, o São Doidão está com 10 pessoas na formação, majoritariamente usuários do sistema de atenção à saúde mental. Os demais integrantes são voluntários, que de alguma forma foram afetados pelo trabalho artístico do grupo. “Mesmo diante da condição psíquica , o nosso foco é a arte. Galgar espaço com o labor da arte”, chama a atenção o regente, que conta com colaboração da cantora e artista multimídia Andreia Dario e de Ana Carolina na preparação vocal e corporal do grupo, cuja logomarca (um santo maestro) e figurinos foram criados pelo designer Aleixo da Cruz.
“Nossa experiência no grupo prova que a música vai além do intelecto formal”, repara a cantora Deh Mussulini, que, graduada em música na UFMG, aderiu ao São Doidão como voluntária. Baixo, tenor e, basicamente, soprano e mezzo (um deles atinge contralto) estão na formação do grupo vocal, que canta essencialmente MPB. De Chico Buarque (Tanto mar e Partido alto) ao usuário da rede pública de saúde mental José Anacleto Texeira (Amor de favela e O canto do peru), passando por Pixinguinha (Lamentos, com Vinicius de Moraes), o repertório do disco ganha acréscimos no palco, com a participação do próprio Helvécio Viana (A meia), além de Vinicius e Baden Powell (Berimbau), Luiz Vanderlei e João do Vale (Coronel Antonio Bento) e Renato Teixeira (Romaria).
“Desenvolver projeto na área é tão importante para os portadores de sofrimento psíquico quanto para nós, artistas. Quebramos muitos paradigmas com esse tipo de iniciativa e ainda abrimos possibilidades de pesquisas. Nós, por exemplo, depois de uma década de atuação nos centros de convivência de saúde mental da capital, quando criamos o grupo Trem Tantã, de experimentação sonoro-poética, continuamos trabalhando com a linguagem da arte e loucura, que irá resultar no livro Uma experiência intersemiótica com a loucura, que pretendo publicar. O Trem Tantã foi uma experiência pioneira que fizemos a partir das oficinas ministradas nos centros de convivência. Apesar de já não militar no meio, mantenho trabalho voluntário com o grupo, que já gravou dois CDs. O eixo da nossa pesquisa é a rítmica e a poética, utilizando depoimentos e experiências dos portadores de sofrimento psíquico. Trata-se de um projeto de inserção social e de resgate da cidadania.”
INSENSTATA E RECONHECIDA
Experiência que tornou BH referência mundial na área, a Mostra de Arte Insensata revelou ao mercado artistas plásticos como Rogério Sena, do Centro de Convivência Arthur Bispo (Regional Leste), e Rosilene, do Centro de Convivência do Providência (Norte), além do multiartista José Jacinto Neto, popularmente conhecido como Zé do Poço, “homem de mil profissões e 16 necessidades”, como ele mesmo gosta de se autodefinir, que depois da passagem pelos centros de saúde mental teria “caído no mundo”, como gostam de dizer os fãs do artista.
“A pintura naif de Rogério Sena já é amplamente consumida pelos marchands mineiros”, atesta Wesley Simões, um dos idealizadores e curadores da Insensata, ao falar do trabalho do pintor, escritor e ator da Rede Parabolinoica de Arte e Loucura. “Ele pode até não conseguir fazer um trabalho contínuo. Vai precisar de uma supervisão, mas hoje já é reconhecido no meio”, acrescenta Wesley, que, além de artista plástico, também é professor no projeto de saúde mental de Belo Horizonte.
Bienal, a Mostra de Arte Insensata já teve três edições, a última delas no ano passado, no Espaço 104, quando também ganhou itinerância, circulando pelo Rio de Janeiro e Goiânia. “Ela surge da demanda dos centros de convivência, que têm muitos artistas e artesãos trabalhando com portadores de sofrimento mental. Trata-se de uma produção muito boa e relevante”, afirma Wesley Simões, admitindo que o principal objetivo da Insensata é dar visibilidade aos usuários da rede pública de saúde mental.
Ao adquirir um lote de obras da mais recente edição da mostra, o Ministério da Saúde contribuiu para o início da criação do acervo de arte da saúde mental de Belo Horizonte, que reúne mais de 80 artistas a cada nova bienal. O modelo singular de atuação na área, segundo Wesley, teria contribuído para o estreitamento de laços da capital mineira com regiões como a província de Bolonha, na Itália, que também desenvolve trabalho semelhante na área.
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