Miguel de Cervantes Saavedra escreveu esta sábia sentença em sua obra-prima “El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”: “Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay!”
Pois para mim, que não acreditava em bruxa, eis que um dia ela apareceu. Melhor dizendo, uma noite...
Já era a década de 1970. Para quem começou a voar o trecho Rio – São Paulo – Rio nos DC-3 da Real Transportes Aéreos na década de 1960, o medo de voar já ficara amortecido. Não há outra solução, ou você não tem medo de voar ou, depois de alguns vôos, se conforma e conclui que não pensar no assunto é melhor do que morrer um pouco a cada decolagem ou a cada aterrissagem.
Por isso não foi nem menor nem maior o medo que senti ao entrar num táxi aéreo, um pequeno bimotor que nos levaria até Uberaba. Tínhamos um show em Uberlândia, mas como precisávamos voltar logo após o show e o aeroporto de Uberlândia não tinha iluminação para manobras à noite, aterrissamos em Uberaba e de lá fomos de carro até Uberlândia. Éramos cinco, Chico Buarque e o MPB4.
O show correu sem problemas e logo após estávamos dentro dos carros que nos levariam de volta a Uberaba, de onde retornaríamos ao Rio de Janeiro. Não me lembro como nos acomodamos nos carros, mas tenho certeza de que Miltinho estava no mesmo carro que eu, pois foi dele que ouvi a história do Roberto “Cabeçada”.
Devagar, amigos. Antes, precisamos preparar o ambiente para depois contar a história...
Primeiro: a estrada entre Uberlândia e Uberaba é praticamente uma reta só, fato este, aliás, que fez com que Miltinho se lembrasse da história. Segundo: já era tarde da noite e só víamos a estrada pela iluminação dos faróis do carro em que estávamos. Entraram no clima? Pois então aí vai a história de Roberto “Cabeçada”:
Contou-nos Miltinho que Roberto “Cabeçada” era um amigo dele que tinha um estranho tique nervoso. Esse tique consistia em virar bruscamente a cabeça para o lado direito como se estivesse dando uma cabeçada para trás, daí seu apelido.
Depois de alguma insistência, “Cabeçada” contou a Miltinho a origem de tal transtorno.
Uma noite, dirigindo numa estrada com muitas retas, foi ficando sonolento quando de repente, apavorado, viu surgir à frente do carro uma pessoa... Uma velhinha estava parada no meio da estrada e ele não teve reflexos suficientes para desviar dela. Desesperado, pensou na tragédia que estava vivendo, mas se arrepiou ao constatar que não tinha havido barulho nem impacto ao passar sobre a velhinha. Olhou pelo retrovisor para ver se havia um corpo na estrada e, aterrorizado, descobriu que, ao invés de corpo na estrada, a velhinha estava sentada no banco traseiro do carro e, de tempos em tempos, dava-lhe fortes puxões no seu cabelo, bem na nuca. A partir dessa noite, Roberto passou a conviver com o terror de ter seu cabelo puxado pela velhinha... E tome de cabeçada.
Entre o medo e o sarcasmo, preferimos, quase sempre, o sarcasmo. E a história da velhinha serviu de tema para várias conversas engraçadas, até mesmo quando chegamos ao aeroporto e entramos no avião. Nós cinco, o piloto, o co-piloto e uma garrafa de uísque. Mal sabíamos que havia mais um passageiro a bordo. Melhor dizendo, uma passageira...
“Yo no creo em brujas...”
Todos os procedimentos para a decolagem corretos, o avião acelerou e em pouco tempo estávamos voando em direção ao Rio de Janeiro. A bordo, num ambiente descontraído, eram contadas mais histórias engraçadas sobre o caso do Roberto “Cabeçada”. Estávamos tão à vontade que o uísque ficou num banco, desprezado. O que, diga-se, não era comum acontecer.
E mais histórias da velhinha e mais risadas, quando alguém, numa piada totalmente sem graça, disse:
– Olha a velhinha aí! Ao mesmo tempo em que deu três batidinhas na janela do avião.
As batidas se confundiram com uma campainha estridente na cabine do pequeno bi-motor. Imediatamente o avião deu uma guinada para a direita. Após algum tempo o piloto conseguiu estabilizar o aparelho e iniciou uma curva acentuada, como se estivesse voltando... E estava voltando mesmo!
O co-piloto, com uma cara apavorada, pediu que trocássemos de assento, de forma que o peso maior ficasse sobre a asa esquerda, a que tinha o motor que ainda funcionava... Pois foi o que aconteceu, um motor havia parado com 20 minutos de vôo e estávamos retornando a Uberaba.
Um silêncio, só preenchido pelo ronco do único motor que nos restava, nos trazia à mente alguns problemas sérios.
O co-piloto tentava, desesperadamente, entrar em contato com a base no aeroporto de Uberaba. Seu desespero tinha uma razão crucial. As luzes do aeroporto de Uberaba só ficaram acesas até a decolagem do avião, depois disso, todos iriam dormir...
O tempo que levamos até a parada do motor, seria o dobro para retornarmos. E a garrafa de uísque começou a ser esvaziada. Quarenta minutos de ansiedade e medo. Curiosamente, apesar de se perceber facilmente a velocidade de esvaziamento da garrafa, todos continuavam sóbrios, como se estivessem bebendo água.
Aos 20 minutos de voo, com apenas um motor nos mantendo no ar, uma notícia boa: o aeroporto estava iluminado nos esperando!
E, no que parecera a nós umas vinte horas, finalmente tocamos, meio desequilibrados, a pista do bendito aeroporto de Uberaba.
A garrafa de uísque havia sido devidamente esvaziada até que o avião parou em frente ao saguão do aeroporto e o piloto desligou o nosso heróico motor.
Inacreditavelmente sóbrios, levantamos, descemos as escadas do avião e ao pisar o solo... Estávamos todos completamente bêbados!
E ninguém mais, bêbado ou não, sequer ousou tocar no nome da nossa passageira. Nunca mais! Mesmo porque, no dia seguinte voltaríamos para o Rio naquele mesmo avião. Eu hein!
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