Pela passagem dos 20 anos de morte do maestro, o Musicaria Brasil publica, em partes, o artigo escrito pela Doutora Isabel Cristina Martins Guillen* que aborda sobre a sua relação com os maracatus de Recife
RESUMO
Este artigo discute as relações culturais construídas em torno dos maracatus nas décadas de 1930 a 1950 na cidade do Recife, principalmente os trânsitos que a música promoveu entre compositores eruditos, artistas populares e grupos considerados folclóricos. Seu objetivo é demonstrar que nesses trânsitos as ressignificações culturais são amplas e complexas, e seu entendimento pressupõe a reconstituição das redes sociais e culturais em que se deram.
PALAVRAS-CHAVE: maracatus; Guerra Peixe; Recife
(continuação...)
Guerra Peixe esteve no Recife pela primeira vez em julho de 1949, quando teve a oportunidade de ver uma apresentação do maracatu-nação Elefante, de Dona Santa. Em crise com o movimento dodecafônico, o maestro aceitou a tarefa de conduzir a orquestra da Rádio Jornal do Commercio, recém-inaugurada. Já acumulava experiência como arranjador, tendo trabalhado nos estúdios da indústria fonográfica, fazendo arranjos para Aurora Miranda, Marília Batista e Francisco Alves. Para Nepomuceno, “os estúdios foram uma grande escola para ele, que se transformaria num dos maiores arranjadores da música popular brasileira. E música já era território sem fronteiras para Guerra Peixe, que compôs até marchinhas em parceria com o caipira nordestino Jararaca, o genial alagoano parceiro de Ratinho”.
Em 1948, Guerra Peixe apresentava no Rio de Janeiro um programa de rádio que se chamava “Ritmos cruzados” e que levaria para o Recife no ano seguinte. O rádio viria a se constituir num espaço relevante para a “expansão de sua inventiva personalidade”. Nesse programa, Guerra Peixe “brincava com gêneros e ritmos: apresentava sucessos populares com arranjos eruditos, e transportava peças clássicas, como uma de Beethovem, para o ritmo de samba”.
O trabalho na Rádio Jornal do Commercio o colocou em contato com os músicos recifenses, ao mesmo tempo em que lhe deu chances de fazer as recolhas de música popular. Atuava em diversos programas de auditório, a exemplo de “Harmonia Nitroquímica” ou de “Mil, três mil, cinco mil”. Ao lado de Teófilo Barros, Sebastião Lopes e outros músicos, compositores e cantores, Guerra Peixe era responsável pelos arranjos e “efeitos orquestrais” da programação da emissora31. Seu grande programa, no entanto, foi o “Jardim de Melodias”, em que oferecia aos ouvintes “as mais belas páginas da música brasileira, notadamente as recolhidas por Guerra Peixe em motivos folclóricos”.
Ao mesmo tempo, Guerra Peixe não ficou improdutivo em termos de composição. Em 1950, ganhou o 1° prêmio do concurso de composições patrocinado pela Prefeitura do Recife em comemoração ao centenário do Teatro Santa Isabel, acontecimento abundantemente discutido nos jornais do Recife. Sua Abertura solene recebeu, por unanimidade, o primeiro prêmio do júri, e o segundo colocado foi Capiba. Em 1951, em concurso do Museu de Arte Moderna de São Paulo, obteve uma bolsa para o III Curso Internacional de Férias de Teresópolis, no Rio de Janeiro, com Sonata para violino e piano. No mesmo ano compôs a trilha sonora do filme Terra é sempre terra, de Tom Payne. Também comporia, em 1953, já morando em São Paulo, a trilha sonora do filme Canto do mar, de Alberto Cavalcanti. Em 1952, escreveu uma série de artigos para o suplemento literário do Diário de Pernambuco com o título de “Um século de música no Recife”, fazendo um apanhado da vida musical da cidade no século XIX. Morando no Recife, teve a oportunidade de conhecer Câmara Cascudo, com quem trocou idéias, sendo por ele incentivado a publicar um livro sobre as recolhas que fazia. Recebeu também visita de Renato Almeida, com o qual conversava sobre o desenvolvimento das pesquisas. Ao relembrar esses anos vividos no Recife, Guerra Peixe comenta:
Três anos de muita pesquisa e muito trabalho, não foi de passeio. Eu estava completamente por fora dos meios musicais. Era só rádio e dali xangô, maracatu, etc. Levei 40 dias para entender os toques característicos dos tradicionais maracatus. Nenhum músico profissional no Recife conhecia aqueles toques. Só depois que fui para lá é que passou a ser questão de honra para os bateristas saberem tocar o ritmo dos maracatus. Antes, ninguém dava bola. Um toque de xangô levei 60 dias para aprender. E só aprendi por causa do sábio conselho do preto velho que tocava: “Se ficar olhando para minha mão, o senhor não vai aprender nunca.”
E quanto aos maracatus? Em 1952, escreveu a Vasco Mariz a respeito dos maracatus de Capiba:
Quanto aos maracatus do Capiba devo dizer o seguinte: conheço-os todos. Como canções são muito bonitinhos e inspirados. Capiba arranjou um ritmo qualquer para cada um deles. Mas de maracatu eles não têm é nada. Aliás, o maracatu autêntico, o que veio dos negros bantus — de Angola ou do Congo —, é coisa completamente diferente. Quem julgar que esses maracatus do Capiba têm alguma coisa a ver com a dança, verificará o tremendo engano. O maracatu autêntico (com o ritmo autêntico, digo) nunca foi dançado nos salões de baile e nem as orquestras faziam o seu verdadeiro ritmo. Agora, apesar de não ser mais executado em bailes, é que as orquestras começam a [fazê-lo] um pouco, depois que eu consegui escrevê-lo para a rádio. Diziam que o ritmo era muito difícil, e que a orquestra não o tocaria. Eu, porém, acabei com essa lenda e os poucos que escrevi são executados com extraordinário sucesso. [...] Acrescente-se: o próprio Capiba parece ter reconhecido seu erro. Tanto que desde que as orquestras da rádio começaram a executar o maracatu no seu toque autêntico, ele, o Capiba, nunca mais escreveu outro maracatu. E levei meses até conseguir grafar o ritmo dos zabumbas, que é, sem nenhum exagero, aquilo que eu escrevi no artigo que mandei para você: O zabumba no maracatu A carta aponta para muitas questões que precisam ser mais bem discutidas e analisadas. No entanto, fica muito claro que, para o maestro, a transposição do maracatu tradicional para a música orquestrada de Capiba guardava uma enorme distância do “maracatu autêntico”, que só poderia ser rompida quando se levasse a sério a análise da música folclórica. No final da carta, refere-se ao primeiro trabalho que publicou sobre a música dos maracatus, no Diário de Pernambuco. Esse artigo traz uma análise preliminar, destacando em especial a atuação dos bombos (ou zabumba, como prefere Guerra Peixe). Ela seria retomada como ponto de partida para o livro Maracatus do Recife, publicado em 1955. O maestro salienta que a primeira impressão ao ouvir o Maracatu Elefante era a de que “os tocadores de zabumba articulavam seus baques sem nenhuma obediência a qualquer disciplina rítmica”. Tal impressão devia-se à própria concepção de harmonia rítmica que ele como músico tinha e que se chocava com a produzida pelos maracatus. Para Guerra Peixe, essa diferença radical provinha “da orientação que cada representante de grupos sociais diferentes recebe no desenvolvimento de suas aptidões e necessidades espirituais”. Na concepção ocidental, aos instrumentos de tonalidade grave cabe uma função rítmica mais básica, o que não ocorre nos maracatus: “os baques são articulados fora daqueles momentos em que o sentimento rítmico do homem comumente encontra referência para medir o tempo”. Nesse sentido, “o maracatu tem uma batucada que desnorteia o mais experimentado ouvido que o escuta pela primeira vez.” É notório que a estadia de Guerra Peixe no Recife foi decisiva para sua carreira a partir desse período. Em Maracatus do Recife, ele afirma:
Em junho de 1949 visitamos o Recife pela primeira vez. Influenciados pela leitura de trabalhos publicados sobre o maracatu (cortejo), aproveitamos a ocasião para, naquela cidade, compor um maracatu (música) a fim de integrar uma “suíte” para quarteto ou orquestra de cordas. Dias depois tivemos a oportunidade de assistir, mais ou menos como turista, a uma exibição especial do Maracatu Elefante, e a desilusão sobrevinda é absolutamente indescritível... Apesar da mencionada obra haver obtido o aplauso de pessoas bem intencionadas nos problemas estéticos da música brasileira, não podemos deixar de denunciar, agora, o distanciamento que separa a peça musical da fonte. Posteriormente estudados os grupos populares do Recife, incluímos um maracatu na “Suíte Sinfônica n. 2”, na qual as principais características dessa modalidade de música popular estão entrosadas de maneira mais direta. É esse atualmente nosso ponto de vista, quanto ao aproveitamento do folclore na criação de obras que anunciam as fontes que lhe dão origem.
Esta longa citação enuncia o quão complexa é para Guerra Peixe a transcrição do popular-folclórico em sua música, ao mesmo tempo em que explica a exigência do maestro quanto à qualidade e profundidade do que chama de pesquisa folclórica, pois, diferentemente de muitos outros folcloristas e músicos, não se limitou a recolher as manifestações da cultura popular como matéria-prima a ser trabalhada por ele musicalmente. Seu trabalho não pode ser classificado como de um folclorista “tradicional” ou “típico”, transpondo as fronteiras que delimitam os campos do saber, caminhando em direção a uma etnomusicologia, ainda que intuitiva. Outros trabalhos de Guerra Peixe, publicados posteriormente, revelam o mesmo cuidado e contribuíram para que as manifestações culturais neles abordadas alcançassem um estatuto e uma legitimidade até então não obtidos, notadamente nos seus estudos sobre os caboclinhos, as bandas de pífano ou zabumbas e as rezas de defunto. Se o Recife foi um momento de inflexão na carreira de Guerra Peixe, como a obra do maestro foi recebida na cidade? Em reportagem publicada no Diário da Noite do Recife, encontramos indícios de como pode ter sido a estada de Guerra Peixe na cidade e sua inserção no meio intelectual. Nela se lê que “o Recife não deu a este homem o valor que realmente possui”, recusando-se a publicar em forma de livro artigos que Guerra Peixe publicara no Diário de Pernambuco, sob o título “Um século de música”. O Instituto Joaquim Nabuco também teria se recusado a aceitá-lo como pesquisador, “negando-lhe a oportunidade pleiteada de organizar as pesquisas de folclore musical” com “temor de que o ingresso de uma tão relevante personalidade lançasse ao segundo plano as glórias da terra...”. O livro, no entanto, acolhia uma “lição de pernambucanismo”, de amor ás tradições.
Maracatus do Recife revelava uma grande distância dos seus primeiros trabalhos intelectuais a respeito da musicalidade dos maracatus. É produto de uma reflexão madura, pautada em muitas pesquisas, tanto bibliográfica quanto fruto de suas observações nos grupos, momentos em que anotava as músicas ou mesmo as gravava. Essas pesquisas lhe deram segurança para criticar outros autores, seja por lançarem hipóteses sem fundamentos em pesquisa, seja por tratarem as informações com descuido, como se fossem coisas de somenos importância. Neste último caso, o maestro chamava a atenção para o trabalho de Ascenso Ferreira, porque ele não diferenciara as toadas dos maracatus de baque-virado dos maracatus de baque-solto. Ao que tudo indica, os maracatus observados por Ascenso, em sua infância em Palmares, não eram os maracatus iguais aos observados por Guerra Peixe no Recife. Essa confusão é atribuída a uma possível “irreflexão” de Ascenso...
É possível também fazermos uma leitura comparada de Guerra Peixe, atentando para aqueles com quem dialoga e de quem quer guardar distância. Uma leitura mais histórica, enfim. Algumas questões são centrais no texto de Guerra Peixe; elas lhe permitem marcar a diferença com o saber posto em circulação sobre os maracatus, no momento em que escrevia. A primeira delas diz respeito à origem do maracatu. Havia, quanto a isso, um saber instituído, contra o qual Guerra Peixe se insurgiu, o que é perceptível para seus críticos e resenhadores: Maracatus do Recife surpreendeu porque deu mostras do “pesquisador paciente, responsável, cheio de cautelas, amplo nas suas investigações” Para Paulo Afonso Grisolli, Guerra Peixe “foi ao arquivo” e não simplesmente repetiu o que os modernos costumavam fazer ao afirmar que o maracatu “ é um cortejo real cujas práticas são reminiscências decorrentes das festas de coroação de reis negros, eleitos e nomeados na instituição do Rei do Congo”. Fórmula consagrada desde Pereira da Costa, inexistiam, entretanto, quaisquer estudos sobre essa prática cultural e sobre sua relação com os maracatus. Guerra Peixe trouxe para a discussão em torno da pesquisa folclórica a necessidade de se desconstruírem esses saberes, ao apontar para a existência de autos e outros indícios, como as Aruendas, de que a origem do maracatu não se deu em linha reta com a instituição dos Reis do Congo. Ele sentiu a necessidade de não repetir simplesmente o já sabido e admitido. E o fez “sem temer usar o talvez e o parece que, quando isso lhe é exigido, pela sua responsabilidade de estudioso das coisas do folclore”.
Guerra Peixe não temeu discordar de autoridades estabelecidas, a exemplo de Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga. Questionou inclusive seus argumentos em relação à etnologia da palavra maracatu, que ambos os autores remontavam a maracá, e sua origem indígena, portanto. Pareceu-lhe mais verossímil a observação de Gonçalves Fernandes, que associa maracatu ao vocábulo maracatucá (vamos debandar), ressaltando a sua proximidade com a língua falada pelos que faziam o maracatu46. Mas é na discussão sobre a “dama do paço” — grafia hoje não questionada — que se revelou o tino de pesquisador de Guerra Peixe, sua proximidade com aqueles que praticavam o maracatu, mostrando a diferença que faz quando quem escreve se assenta em observação direta. A calunga do maracatu constituía-se num enigma a ser pensado, para além do costumeiro jargão “reminiscência de antigos totens africanos”.
Mário de Andrade tinha dito que as damas que a conduziam desenvolviam um passo distinto e, por isso, eram chamadas de “dama do passo”. Para Guerra Peixe, em uma cuidadosa linguagem em que aventa “a hipótese da interpretação dos estudiosos haver-se derivado de um engano inicial”, podia-se levantar a possibilidade de que o vocábulo se referia à posição da dama enquanto membro do cortejo real, ou melhor, do paço. Mas concluia que “não há (...) [dúvida], o problema é complexo...” Palavras que não devemos esquecer quando se trata de enfocar duas outras questões de enorme complexidade, que Guerra Peixe enfrenta (se bem ou mal, este é um outro problema). A primeira delas envolve a relação dos maracatus com os xangôs, constatada pelo maestro e posta às claras. No momento em que publicou seu livro, essa associação não provocou mais temores ou perseguições policiais, o que lhe facilitou a constatação. Importa frisar que essa associação não aparecia claramente na historiografia, a não ser como subterfúgio utilizado pelos populares para escaparem da sanha policial. O livro de Guerra Peixe não autoriza os atuais pesquisadores a sustentar a tese de que a relação dos maracatus com os cultos afros lhes é inerente ou constitutiva. Podemos afirmar que hoje a relação dos maracatus-nação com as religiões afrodescendentes é identitária, mas não devemos ler as afirmações de Guerra Peixe como indícios de que sempre foram assim. O fato de que essa relação era evidente na década de 1940 não autoriza nenhum historiador ou estudioso da cultura popular a concluir que os maracatus-nação sempre estiveram relacionados com os xangôs.
A segunda questão diz respeito à diferença que Guerra Peixe identifica entre os tipos de maracatus. Para nós, hoje, essa diferença é obvia, porém no momento em que publicou sua obra, houve tal resistência que o impacto de suas idéias só se tornaria perceptível após a publicação do livro de Katarina Real, Folclore do carnaval do Recife, na década de 1960, e que consagrou as denominações de maracatu-nação e maracatu de orquestra, ou rural, e a segunda edição do livro do maestro. Para Guerra Peixe, como músico que se deteve a ouvir os que faziam os maracatus, essa diferença era gritante, a ponto de criticar Roger Bastide e Ascenso Ferreira por não perceberem as diferenças nas toadas. Seus trabalhos nos provêem de indícios preciosos a partir dos quais podemos formular importantes questões sobre as práticas culturais, sobre os trânsitos que delineamos neste artigo. A análise que efetuamos denota que, na cidade do Recife, os percursos culturais entre os gêneros musicais, o ir e vir entre o que se denominava música folclórica, popular e erudita, eram mais freqüentes do que se pensa, e o trânsito se dava em vias de mão dupla, sem falar nos constantes cruzamentos. Ao analisar as mediações culturais, a historiografia tem enfatizado apropriações, contribuições, contatos e circularidades, mas nem sempre se destaca que essas mediações não transitam numa via de mão única. Por que não transitar pela contramão e se interrogar sobre os modos como a “cultura popular” se apropria da “cultura erudita”? Por que partirmos do pressuposto empobrecedor de que a “cultura popular” não tem acesso à “erudita”? Uma historinha, que aparece “folclorizada” (evidenciando a dificuldade de se transitar nessa contramão), nos dá fortes indícios de que se trata de um campo de pesquisa muito promissor:
O maestro Guerra Peixe, há dias, me contou caso que bem demonstra a mistificação a que ficam sujeitos muitos pesquisadores. Quando viveu no Recife, catando pontos de xangôs, seu guia era o famoso babalaô Gobá. Depois de lhe cantar muita música de terreiro, Gobá se tomou de simpatia e decidiu ser honesto:
— Tudo o que lhe ensinei foi errado.
Ante o espanto de Guerra Peixe, explicou:
— Sempre ensino errado aos “brancos” que vêm aprender pontos. Troco o nome das entidades, confundo as melodias e as letras. Mas hoje somos amigos e vamos corrigir tudo o que cantei...
Gobá passou a freqüentar a casa do maestro. Ficou íntimo da família. Um dia:
— Guerra, fiz um ponto novo para xangô. Agradou muito no terreiro. Todos os cavalos já o aprenderam. Ficou uma beleza! Acrescentou:
— Inspirei-me naquela musiquinha que sua esposa toca no piano.
Cantou o folclore de sua autoria e Guerra Peixe quase caiu pra trás. O novo ponto de xangô lançado com êxito nos terreiros recifenses era, precisamente, Pour Elise, peça para piano de Beethoven. Beethoven está agora nos xangôs pernambucanos, servindo de apoio à incorporação do orixá... Imagino que daqui a alguns anos, um desses pesquisadores improvisados descubra a melodia. E saia afirmando que Beethoven se inspirou no folclore brasileiro para compor Pour Elise...”
O livro de Guerra Peixe, Maracatus do Recife, tem uma história semelhante. É inegável que ele não ficou restrito aos âmbitos da cultura erudita ou acadêmica. Ao longo das décadas, após duas edições, as apropriações da obra de Guerra Peixe precisam ser pensadas com mais vagar. Assim como a historinha de Gobá, muitos participantes dos maracatus têm lido Guerra Peixe. Citado por muitos mestres e donos de maracatus, o livro do maestro constituiu-se em saber consagrado, autoridade suficiente para legitimar na atualidade muitas práticas culturais e para defini-las como tradicionais ou não.
Dessa forma, os caminhos que percorremos, entre maracatus folclóricos e tradicionais, maracatus compostos por Capiba, e os compostos por Guerra Peixe, nos levam a concluir, tal com esclarece Chartier, que práticas de representação modificam práticas culturais e vice-versa. Mas esta não é uma constatação de menor importância ou que deva ser banalizada quando pensamos na complexidade das relações culturais, pois nos permite perceber os sujeitos em constante movimento, em meio ao qual as práticas culturais estão sempre sendo criadas ou recriadas. E, acima de tudo, esse movimento permanente também nos possibilita apreender a dimensão social e política em que as práticas culturais são vivenciadas.
Maracatus do Recife revelava uma grande distância dos seus primeiros trabalhos intelectuais a respeito da musicalidade dos maracatus. É produto de uma reflexão madura, pautada em muitas pesquisas, tanto bibliográfica quanto fruto de suas observações nos grupos, momentos em que anotava as músicas ou mesmo as gravava. Essas pesquisas lhe deram segurança para criticar outros autores, seja por lançarem hipóteses sem fundamentos em pesquisa, seja por tratarem as informações com descuido, como se fossem coisas de somenos importância. Neste último caso, o maestro chamava a atenção para o trabalho de Ascenso Ferreira, porque ele não diferenciara as toadas dos maracatus de baque-virado dos maracatus de baque-solto. Ao que tudo indica, os maracatus observados por Ascenso, em sua infância em Palmares, não eram os maracatus iguais aos observados por Guerra Peixe no Recife. Essa confusão é atribuída a uma possível “irreflexão” de Ascenso...
É possível também fazermos uma leitura comparada de Guerra Peixe, atentando para aqueles com quem dialoga e de quem quer guardar distância. Uma leitura mais histórica, enfim. Algumas questões são centrais no texto de Guerra Peixe; elas lhe permitem marcar a diferença com o saber posto em circulação sobre os maracatus, no momento em que escrevia. A primeira delas diz respeito à origem do maracatu. Havia, quanto a isso, um saber instituído, contra o qual Guerra Peixe se insurgiu, o que é perceptível para seus críticos e resenhadores: Maracatus do Recife surpreendeu porque deu mostras do “pesquisador paciente, responsável, cheio de cautelas, amplo nas suas investigações” Para Paulo Afonso Grisolli, Guerra Peixe “foi ao arquivo” e não simplesmente repetiu o que os modernos costumavam fazer ao afirmar que o maracatu “ é um cortejo real cujas práticas são reminiscências decorrentes das festas de coroação de reis negros, eleitos e nomeados na instituição do Rei do Congo”. Fórmula consagrada desde Pereira da Costa, inexistiam, entretanto, quaisquer estudos sobre essa prática cultural e sobre sua relação com os maracatus. Guerra Peixe trouxe para a discussão em torno da pesquisa folclórica a necessidade de se desconstruírem esses saberes, ao apontar para a existência de autos e outros indícios, como as Aruendas, de que a origem do maracatu não se deu em linha reta com a instituição dos Reis do Congo. Ele sentiu a necessidade de não repetir simplesmente o já sabido e admitido. E o fez “sem temer usar o talvez e o parece que, quando isso lhe é exigido, pela sua responsabilidade de estudioso das coisas do folclore”.
Guerra Peixe não temeu discordar de autoridades estabelecidas, a exemplo de Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga. Questionou inclusive seus argumentos em relação à etnologia da palavra maracatu, que ambos os autores remontavam a maracá, e sua origem indígena, portanto. Pareceu-lhe mais verossímil a observação de Gonçalves Fernandes, que associa maracatu ao vocábulo maracatucá (vamos debandar), ressaltando a sua proximidade com a língua falada pelos que faziam o maracatu46. Mas é na discussão sobre a “dama do paço” — grafia hoje não questionada — que se revelou o tino de pesquisador de Guerra Peixe, sua proximidade com aqueles que praticavam o maracatu, mostrando a diferença que faz quando quem escreve se assenta em observação direta. A calunga do maracatu constituía-se num enigma a ser pensado, para além do costumeiro jargão “reminiscência de antigos totens africanos”.
Mário de Andrade tinha dito que as damas que a conduziam desenvolviam um passo distinto e, por isso, eram chamadas de “dama do passo”. Para Guerra Peixe, em uma cuidadosa linguagem em que aventa “a hipótese da interpretação dos estudiosos haver-se derivado de um engano inicial”, podia-se levantar a possibilidade de que o vocábulo se referia à posição da dama enquanto membro do cortejo real, ou melhor, do paço. Mas concluia que “não há (...) [dúvida], o problema é complexo...” Palavras que não devemos esquecer quando se trata de enfocar duas outras questões de enorme complexidade, que Guerra Peixe enfrenta (se bem ou mal, este é um outro problema). A primeira delas envolve a relação dos maracatus com os xangôs, constatada pelo maestro e posta às claras. No momento em que publicou seu livro, essa associação não provocou mais temores ou perseguições policiais, o que lhe facilitou a constatação. Importa frisar que essa associação não aparecia claramente na historiografia, a não ser como subterfúgio utilizado pelos populares para escaparem da sanha policial. O livro de Guerra Peixe não autoriza os atuais pesquisadores a sustentar a tese de que a relação dos maracatus com os cultos afros lhes é inerente ou constitutiva. Podemos afirmar que hoje a relação dos maracatus-nação com as religiões afrodescendentes é identitária, mas não devemos ler as afirmações de Guerra Peixe como indícios de que sempre foram assim. O fato de que essa relação era evidente na década de 1940 não autoriza nenhum historiador ou estudioso da cultura popular a concluir que os maracatus-nação sempre estiveram relacionados com os xangôs.
A segunda questão diz respeito à diferença que Guerra Peixe identifica entre os tipos de maracatus. Para nós, hoje, essa diferença é obvia, porém no momento em que publicou sua obra, houve tal resistência que o impacto de suas idéias só se tornaria perceptível após a publicação do livro de Katarina Real, Folclore do carnaval do Recife, na década de 1960, e que consagrou as denominações de maracatu-nação e maracatu de orquestra, ou rural, e a segunda edição do livro do maestro. Para Guerra Peixe, como músico que se deteve a ouvir os que faziam os maracatus, essa diferença era gritante, a ponto de criticar Roger Bastide e Ascenso Ferreira por não perceberem as diferenças nas toadas. Seus trabalhos nos provêem de indícios preciosos a partir dos quais podemos formular importantes questões sobre as práticas culturais, sobre os trânsitos que delineamos neste artigo. A análise que efetuamos denota que, na cidade do Recife, os percursos culturais entre os gêneros musicais, o ir e vir entre o que se denominava música folclórica, popular e erudita, eram mais freqüentes do que se pensa, e o trânsito se dava em vias de mão dupla, sem falar nos constantes cruzamentos. Ao analisar as mediações culturais, a historiografia tem enfatizado apropriações, contribuições, contatos e circularidades, mas nem sempre se destaca que essas mediações não transitam numa via de mão única. Por que não transitar pela contramão e se interrogar sobre os modos como a “cultura popular” se apropria da “cultura erudita”? Por que partirmos do pressuposto empobrecedor de que a “cultura popular” não tem acesso à “erudita”? Uma historinha, que aparece “folclorizada” (evidenciando a dificuldade de se transitar nessa contramão), nos dá fortes indícios de que se trata de um campo de pesquisa muito promissor:
O maestro Guerra Peixe, há dias, me contou caso que bem demonstra a mistificação a que ficam sujeitos muitos pesquisadores. Quando viveu no Recife, catando pontos de xangôs, seu guia era o famoso babalaô Gobá. Depois de lhe cantar muita música de terreiro, Gobá se tomou de simpatia e decidiu ser honesto:
— Tudo o que lhe ensinei foi errado.
Ante o espanto de Guerra Peixe, explicou:
— Sempre ensino errado aos “brancos” que vêm aprender pontos. Troco o nome das entidades, confundo as melodias e as letras. Mas hoje somos amigos e vamos corrigir tudo o que cantei...
Gobá passou a freqüentar a casa do maestro. Ficou íntimo da família. Um dia:
— Guerra, fiz um ponto novo para xangô. Agradou muito no terreiro. Todos os cavalos já o aprenderam. Ficou uma beleza! Acrescentou:
— Inspirei-me naquela musiquinha que sua esposa toca no piano.
Cantou o folclore de sua autoria e Guerra Peixe quase caiu pra trás. O novo ponto de xangô lançado com êxito nos terreiros recifenses era, precisamente, Pour Elise, peça para piano de Beethoven. Beethoven está agora nos xangôs pernambucanos, servindo de apoio à incorporação do orixá... Imagino que daqui a alguns anos, um desses pesquisadores improvisados descubra a melodia. E saia afirmando que Beethoven se inspirou no folclore brasileiro para compor Pour Elise...”
O livro de Guerra Peixe, Maracatus do Recife, tem uma história semelhante. É inegável que ele não ficou restrito aos âmbitos da cultura erudita ou acadêmica. Ao longo das décadas, após duas edições, as apropriações da obra de Guerra Peixe precisam ser pensadas com mais vagar. Assim como a historinha de Gobá, muitos participantes dos maracatus têm lido Guerra Peixe. Citado por muitos mestres e donos de maracatus, o livro do maestro constituiu-se em saber consagrado, autoridade suficiente para legitimar na atualidade muitas práticas culturais e para defini-las como tradicionais ou não.
Dessa forma, os caminhos que percorremos, entre maracatus folclóricos e tradicionais, maracatus compostos por Capiba, e os compostos por Guerra Peixe, nos levam a concluir, tal com esclarece Chartier, que práticas de representação modificam práticas culturais e vice-versa. Mas esta não é uma constatação de menor importância ou que deva ser banalizada quando pensamos na complexidade das relações culturais, pois nos permite perceber os sujeitos em constante movimento, em meio ao qual as práticas culturais estão sempre sendo criadas ou recriadas. E, acima de tudo, esse movimento permanente também nos possibilita apreender a dimensão social e política em que as práticas culturais são vivenciadas.
*Isabel Cristina Martins GuillenDoutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autora, entre outros livros, de Errantes da selva: histórias da migração nordestina para a Amazônia. Recife: Editora da UFPE, 2006. iguillen@uol.com.br
Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autora, entre outros livros, de Errantes da selva: histórias da migração nordestina para a Amazônia. Recife: Editora da UFPE, 2006. iguillen@uol.com.br
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