Carlos Lyra (Especial para o Estado)
No início de 1979, uma rádio anunciou o falecimento do poeta Vinicius de Moraes. Tratei logo de ligar para a casa dele e qual não foi meu espanto quando o próprio Vinicius atendeu o telefone. “Alô, Vinicius? É você? Disseram no rádio que você tinha morrido...” E nisso, desabei em pranto, ali mesmo, no telefone. Enquanto me refazia, o poeta me socorreu, em tom carinhoso: “Óh, parceirinho, obrigado pelas lágrimas!” “Pois é...”, retruquei, “... Agora, quando você morrer mesmo, eu não preciso mais chorar...”
Pouco depois fomos ao Restaurante Barbas, recém aberto pelo Nelson Rodrigues Filho e do qual, aliás, Vinicius era sócio – o que explica em parte, talvez, a prematura falência do estabelecimento. Tínhamos um encontro com uma repórter de um jornal alternativo que deveria entrevistar o poeta. Era final de 79, ou início de 80 – estertores do governo Geisel quando nosso poeta já andava bem doente – o que, no entanto, não o impedia de estar armado até os dentes tomando seu uísque e pitando um cigarro. Lembro-me de ter perguntado: “Mas Vinicius, o médico não proibiu você de fumar e de beber?” Ao que ele respondeu: “Ah! parceirinho, você acha que eu vou largar meu uisquinho e meu cigarrinho por causa de mais um ano de vida? Besteira!” Nisso chegou a jovem repórter e sentou-se conosco. Ela, toda descolada, dezenove anos no máximo, camiseta sem manga, boné de aba para trás e, enquanto Vinicius se descontraía com seu uisquinho e cigarrinho, ela se descontraía com o seu – um baseado que, entre um “tapa” e outro, entremeava as perguntas sem qualquer sutileza nas abordagens, até que em determinado momento, depois de um “tapa” profundo, segurou a fumaça e com a voz meio presa, perguntou: “Responde aí poeta. Você está com medo da morte?”. Todos ficamos constrangidos com a pergunta, mas o mais inesperado foi a resposta de Vinicius: “Que medo da morte nada, filhinha. Coloca aí no seu jornalzinho: o que eu estou é com saudade da vida!” Esse era o poeta. Talvez o único que tenha, realmente, vivido e morrido como poeta e emocionado tanta gente com sua espontaneidade, franqueza e carinho, além de seu enorme talento.
Pouco tempo depois, em 9 de julho de 1980, Vinicius faleceu– dessa vez, de verdade. Fui com minha filha Kay só até a capela, sempre evitando enterros, principalmente enterros de artistas, que tendem a se transformar em feiras de vaidades. E, naquele momento, como já tinha dito a ele, não consegui verter uma lágrima.
Mas fica a lembrança do carinho e cuidado que tinha comigo, sempre me defendendo, tal qual um irmão mais velho, e das coisas que dizia de mim. Aos parceiros Tom Jobim, Baden Powell e a mim, se referia como: “Minha santíssima trindade.” E no Samba da Bênção, me imortalizou de vez, com: “A bênção, Carlinhos Lyra, parceirinho cem por cento, você que une ação ao pensamento e ao sentimento.” No que eu só posso retribuir: “A bênção, Vinicius, parceirinho querido, você que dizia na letra, exatamente, o que a minha música havia sentido.”
Fonte: estadao.com.br
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