Em 1955, eu fora convidado para a pré-estréia da peça de Jean-Paul Sartre, Nekrassov, uma sátira violenta e cômica contra a política de direita do governo e o comportamento corrupto da imprensa. A atmosfera do teatro estava pesada e o público, inquieto, pois já se sabia que alguns ministros e a fina flor da intelectualidade parisiense iriam estar presentes. Sartre estava na primeiríssima fila. Para surpresa de todos, antes do levantar das cortinas, Mouloudji , um argelino amado por ser um escritor e compositor contestador e celebrado, maravilhoso intérprete das próprias canções, entrou no palco com uma cadeira na mão, sentou-se com os braços apoiados no encosto e, olhando diretamente para as autoridades presentes, interpretou a capella, sem nenhum acompanhamento musical, a recém composta canção de Boris Vian “O desertor”, que logo mais se transformaria no canto da revolta da juventude francesa contra a Guerra da Argélia, e, na década de 1970, em um dos principais hinos de contestação contra a Guerra do Vietnã, na voz do grupo Peter, Paul e Mary. A canção dizia mais ou menos o seguinte:
Monsieur le Président, je vous fais une lettre Que vous lirez peut-être si vous avez le temps. Je viens de recevoir mes papiers militaires
Pour partir à la Guerre avant mercredi soir Monsieur le Président, je ne veux pas le faire Je ne suis pas sur Terre pour tuer les pauvres gens. C’est pas pour vous fâcher, il faut que je vous dise Ma decision est prise, je m’en vais déserter
S’il faut donner son sang, allez donnez le votre Vous êtes bon apôtre, Monsieur le Président.
(Senhor presidente, escrevo uma carta, Para que o senhor leia, se tiver tempo. Acabo de receber meus papéis militares Para partir para a guerra antes da tarde de quarta-feira. Senhor Presidente, não desejo fazer isto. Não estou na Terra para matar os pobres povos. Não é para incomodá-lo, mas é preciso que eu diga: Já tomei minha decisão.Vou desertar.
Já que é preciso dar o próprio sangue, dê o seu. O senhor é um bom apóstolo, senhor presidente.)
Foi o sinal para o começo da briga entre o governo e os intelectuais. Tudo o que havia no teatro, das cadeiras às pessoas, voou pelos ares. E a estréia de Nekrassov teve que esperar alguns meses para uma oportunidade mais propícia de ser encenada.
Logo em seguida, Hubert , Paul e Jean Louis , que eram um ano mais velhos do que eu, foram convocados para combater na Argélia. Jean Louis voltou logo, gravemente ferido. E eu, esperando uma promoção na Decca que não acontecia, e antevendo minha convocação a qualquer momento, tomei a decisão de partir rapidamente para longe.
O visto de entrada para os Estados Unidos exigia pelo menos um ano de espera. O Canadá era um país muito gelado. Outros países da Europa não serviam, pois existiam acordos de extradição com quase todos eles. Assim, por eliminação, a América do Sul, que tinha uma política liberal com imigrantes, tornou-se o continente escolhido.Vendi meu carro, meus discos, meu toca-discos, tomei o trem para Le Havre e lá comprei uma passagem de terceira classe num navio que partia no dia seguinte para o Brasil, o Uruguai e a Argentina.
Era 15 de novembro de 1955. O dia estava chuvoso, frio. Desde a saída, a tempestade se fazia
ameaçadora. O mar estava revolto, o vento batia com uma força tremenda, o navio balançava para frente e para trás, de um lado para o outro. Era quase impossível andar. Os poucos passageiros, em sua maioria enjoados, ficavam deitados nas cabines. Eu, coração partido, olhava do convés para a França, que já não se podia ver no horizonte… A França que eu abandonava...A França que eu chorava...
Dormi sozinho numa cabine de dois beliches, cada um com três camas, até a primeira escala, na ilha da Madeira, quando subiram a bordo centenas de emigrantes portugueses com malas, pães, queijos, salsichas, mulheres e crianças. E minha cabine ficou completamente tomada por pessoas como eu, que sonhavam com uma vida diferente ou melhor. O tempo já estava magnífico. O céu, de um azul resplandecente. O sol tinha um calor que me era desconhecido. O mar estava tranqüilo.
Uma notícia de mau agouro apareceu no informativo de bordo, anunciando o início de uma revolução na Argentina para depor Perón. A notícia me inquietou, pois imaginei que encontrar um emprego na Argentina em tais circunstâncias seria, sem dúvida, mais difícil.
Mas sendo a despreocupação uma característica da juventude, deixei o sofrimento para depois. Atravessamos a linha do equador participando da cerimônia de passagem e de batismo, presidida pelo comandante do navio, em nome do deus Netuno.
Eu estava totalmente confiante quanto a encontrar um emprego numa terra estranha porque podia me oferecer como confeiteiro, garçom ou cozinheiro, o que me permitiria sobreviver imediatamente até encontrar um emprego melhor.
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