Na segunda-feira seguinte, comecei a procurar emprego como vendedor de discos; uma ocupação, na época, prestigiosa: o vendedor devia ter conhecimento sobre música, orquestras e regentes para aconselhar e conversar com os clientes sobre as várias opções de interpretação de uma determinada obra. Enfim, vendedor de discos ou de livros em 1952 era uma profissão sofisticada, cheia de glamour e elegância. As boas lojas eram pequenas e confortáveis, os proprietários eram geralmente intelectuais, que mantinham relações muito amigáveis com seus clientes.
Comecei pela Champs-Élysées, subindo a avenida pelo lado direito, onde havia uma linda loja, a Lido Musique. Entrei e expliquei meu caso sem sucesso; não havia vaga no momento, mas fui aconselhado a voltar depois das férias de verão. Subi um pouco mais, dessa vez à esquerda da avenida, onde havia uma loja, Pathé Marconi, e me disseram a mesma coisa. Era compreensível, pois Paris ficava deserta nos meses de julho e agosto. Fui em direção à avenida de Friedland e entrei na pequena rua Beaujon, que fica bem perto do Arco do Triunfo. Estava diante do número trinta e me chamou a atenção a reluzente placa de cobre, que indicava “Société Française du Son”; embaixo, “Disques Decca”. O edifício inspirava cultura e bom gosto. A imponente porta de madeira esculpida e pintada de verde-garrafa prenunciava um lugar de trabalho sério.Aí, me lembrei:“Decca... Claro! Claro!” Eu tinha discos da Decca: Louis Armstrong , Ella Fitzgerald , Count Basie, Edith Piaf... “Esta não é uma loja, é muito melhor, é o paraíso, é um santuário! É um lugar onde se fazem os discos!”
Entrei pelo majestoso portão, falei com a recepcionista e fui encaminhado para o chefe da contabilidade, que acumulava muitas funções, entre as quais a de chefe de pessoal. Contei a minha história e o homem disse que de fato, e por acaso, precisava naquele momento de um apontador de estoque. Aceitei na hora. Me demiti da confeitaria na terça-feira e me apresentei na Decca no dia seguinte.
Comecei, então, segurando um pedido com uma das mãos enquanto, com a outra, inspecionava as estantes para encontrar os discos encomendados pelos clientes. Fazia o trabalho com um senso de extraordinária importância, pois sabia estar no centro nevrálgico de um processo que levava a música até o lar das pessoas, que esperavam, impacientes, o momento de desfrutar do prazer de possuir e escutar um disco com o qual tinham sonhado. Antes de seguir com minhas primeiras peripécias na companhia de discos, gostaria de voltar a Jammin’ the Blues e minha imensa gratidão para com esse documentário. Muitos anos depois, já no fim da década de 1970, passava uns dias de inverno na casa do meu velho amigo Claude Nobs, em Montreux, na Suíça. Conversa vai, conversa vem, ele se ofereceu para buscar, no depósito onde guardava as fitas das gravações do festival, qualquer filme sobre jazz que eu quisesse, pois ele comprara, nos Estados Unidos, tudo o que existia no gênero.
Procurei na minha memória a que artista gostaria de assistir. Com muita emoção, falei: Quero ver Jammin’ the Blues.
Eu tenho esse documentário — disse ele. Sociedade Francesa do Som. Discos Decca. Procurou a fita e a colocou na máquina — para minha profunda decepção, a fita estava estragada. Nada se via ou ouvia. No entanto, a partir desse momento, passei a perguntar sempre a pessoas ligadas ao jazz onde poderia encontrar o documentário. Muitas o haviam visto anos antes, mas dele nunca mais tiveram notícia.
Em 1982/1983, Roberto Civita , dono da Editora Abril, que havia recebido uma concessão de canal de TV fechado, convidou-me a trocar idéias sobre a programação. Recomendei que ele trouxesse a MTV para o Brasil. Eu conhecia bem o pessoal da MTV americana, coloquei as duas entidades em contato e a MTV brasileira nasceu. Os americanos, em sinal de agradecimento, quiseram me oferecer um presente, qualquer presente, eu podia escolher. Pensei, pensei... E me lembrei do meu velho amigo Jammin’ the Blues.
Todo o pessoal da MTV era roqueiro; não tinha a mínima ideia do que se tratava, nem nunca tinha ouvido falar do documentário. Mas todos se dispuseram a consegui-lo para mim.
Uns dois anos se passaram. Num belo dia, recebo uma carta do Vinnie, diretor artístico da MTV americana, convidando-me para jantar em Nova York. No envelope, uma passagem de primeira classe Rio-Nova York-Rio. Peguei o avião e, mal me instalei, fui jantar com o Vinnie e uns dez colegas da MTV. Na hora da sobremesa,Vinnie me entregou uma cópia do Jammin’ the Blues, que ele e sua equipe tinham descoberto no acervo de uma universidade do estado de Maryland. No dia seguinte, voltei.
Chegando em casa, coloquei no aparelho de vídeo a fita que eu não via há mais de trinta anos. Lá estava a tela escura com a fumaça do cigarro, o baixo etc. Jammin’ the Blues era ainda mais impactante naquele momento do que nos meus sonhos e lembranças. Fiquei muito emocionado ao constatar que o olhar e o ouvido do jovem Midani não tinham se equivocado ao reconhecer o sinal que a vida, através do Jammin’ the Blues, lhe mandava naquela época... Sim! Valera a pena ter deixado seu futuro nas mãos dessa filmagem maravilhosa!
Ao ler os créditos ao final da projeção, descobri ainda que o documentário tinha sido dirigido por Norman Granz , fundador da Verve e da Pablo Records, com quem estabeleci, anos mais tarde, uma sólida amizade profissional; e, mais ainda, que o documentário tinha sido filmado pelo revolucionário fotógrafo Gjon e produzido pela Warner Filmes, companhia para a qual eu trabalhava naquele momento.
Esse episódio veio também dissipar um receio terrível que a leitura de Les Chemins de la liberté de Jean-Paul Sartre, tinha me inspirado muitos anos antes. O livro, se não me trai a memória, conta a vida de um jovem que decidira ser professor guiado pelo entusiasmo que lhe inspirava a mágica possibilidade de transmitir o conhecimento a gerações futuras.Acontece que, em um momento de sua existência, afligido por grave depressão, ele volta os olhos para trás e descobre que se equivocara na escolha. Pior ainda, quando olha para a frente constata, com pavor, que não lhe restava mais tempo para corrigir o curso do destino. Percebi o extraordinário privilégio com que a vida me presenteou: ao rever o documentário, eu estava, na realidade, olhando para trás, constatando, com imensa alegria, que havia escolhido o caminho certo e que tinha ainda muito tempo pela frente nesse mundo das maravilhas que era a minha profissão.
Voltando a meus dias de apontador de estoque, passaram-se uns dois meses e fui promovido a assistente de vendedor. Era o primeiro passo para aprender esta profissão, dependendo da
generosidade do vendedor... No meu caso, a aprendizagem se limitou a carregar as pesadas pastas do sujeito, com amostras de discos 78 rpm, alguns LPs e uma infinita quantidade de catálogos que se distribuíam em cada loja.
Quando a gente chegava, o vendedor pegava todo o material, entrava para efetuar a venda e me deixava esperando na rua, sob sol, chuva ou neve, para que eu não lhe roubasse os segredos e o estilo.
Depois de uns meses nesse suplício, pedi ao gerente de vendas que me desse uma zona pela qual os vendedores não se interessavam. O gerente me deu de imediato uma zona que cobria os subúrbios de Paris. Comecei então a andar quilômetros todos os dias, entrando em bibocas que vendiam lâmpadas e aparelhos domésticos de pequeno porte, nunca antes visitadas por vendedores de discos e onde, na maior parte das vezes, não tinham qualquer interesse Os caminhos da liberdade. pela estranha mercadoria. À noite, freqüentemente eu tinha os pés ensanguentados, mas estava feliz porque, sim, eu trabalhava com discos! De tanto andar, de tanto argumentar, acabava vendendo quantidades surpreendentes. E quando voltava à loja, semanas depois, compravam de mim um pouquinho mais...
Vendo-me tão entusiasmado, profetizou o dono de uma dessas bibocas:
— Um dia você vai ser uma pessoa importante… Saí da loja com o peito estufado, cheio de felicidade... Imagine só... Eu ia ser um homem importante no mundo do disco!
As companhias de discos daquele tempo eram bem pequenas e dirigidas por pessoas que gostavam de música, com bom senso para negócios. Era uma indústria chamada pelos fundadores de “A indústria da felicidade humana”. Os discos eram principalmente de música clássica, de poemas ou de literatura, de música francesa, de jazz e um pouco de música americana.
Na Decca, éramos talvez quarenta, cinqüenta empregados; do patrão ao mais modesto funcionário, todos se conheciam. Havia na companhia um casal todo-poderoso: mme. de Rieux , uma sofisticadíssima mulher de seus quarenta anos, que cuidava das relações com a imprensa (as más línguas diziam que era amante do dono, Mr. Froment ); e seu marido Max de Rieux , diretor artístico e, ao mesmo tempo, diretor da prestigiosa Ópera de Paris e produtor teatral de grande importância. A vida quis que eu agradasse enormemente a cada um dos dois... Em separado...
Através do Max , comecei a freqüentar não somente o estúdio de gravação, mas também o mundo artístico. Uma atriz da Comédie-Française, conhecida de Max , tomou-se de simpatia por mim e passou a me convidar regularmente para sua casa nas tardes de quinta-feira, quando recebia poetas, atores e escritores amigos. Todo esse pessoal conversava, fofocava, cantava e declamava.
Vez por outra, apareciam Jean Cocteau , Jean Marais , Jean Genet , o escritor Mouloudji . Um dia, entrou porta adentro Fernandel , um dos ícones do cinema francês, que a pedido de todos declamou trechos do conto “La Chèvre de Mr. Seguin” obrigatório em todas as escolas, temido pelos estudantes por ser muito chato, mas muito chato mesmo! Fernandel , com seu maravilhoso sotaque do sul da França e sua compreensão humana do texto, transformou a chatice numa sinfonia pastoral, fazendo surgir belezas emocionantes, inimagináveis ao comum dos mortais, entre os quais, evidentemente, eu estava.
No dia seguinte, fui correndo contar ao Max o milagre presenciado. Max encontrou Fernandel, ouviu, gravou, e o disco foi um enorme sucesso, não somente pela surpreendente beleza da interpretação, mas também porque os pais passaram a comprar essa pequena obra-prima para o bem da educação dos filhos...“La Chèvre de Mr. Seguin”, do escritor francês Alphonse Daudet . Era um texto nunca mais foi a mesma! Nem eu. Porque, saindo do anonimato, cada vez conhecia mais pessoas interessantes. Era convidado para muitos coquetéis e cheguei a aparecer na terceira página do vespertino France Soir, no breve relato do meu desmaio em público, na frente de toda Paris, ao ser apresentado a Michelle Morgan , uma das atrizes mais bonitas e mais celebradas do cinema francês. Participei, também, de uma sessão fotográfica, como galã de uma modelo que apresentava a nova coleção do costureiro Dior, que foi publicada na revista Elle!
As tardes de domingo continuavam sendo dedicadas a visitar Jean Louis Martin e sua família. O pai — Mr. Martin — era um dos diretores do importante banco francês La Société Générale e fazia parte da pequena associação La Sabretache, dedicada a descobrir, nos Marchés aux Puces do país e nas casas particulares, documentos e objetos relacionados a Napoleão Bonaparte, comprando o que pudesse para seu acervo.
Os almoços de domingo com esse pessoal eram sempre muito interessantes, tantas eram as histórias e lendas que contavam sobre esse personagem mítico, até hoje venerado pelo povo francês, que deixava na janela de seu quarto, na Place Vendôme, uma vela acesa a noite inteira para certificar, a quem passava por lá, que ele trabalhava incansavelmente para a grandeza da França.
Num domingo daqueles, um dos sócios surgiu de repente com uma pilha de partituras para tambores que Napoleão Bonaparte mandara compor especialmente para os soldados marcharem para cada batalha. Os historiadores Mercado das pulgas (local de comércio de bens antigos, usados e artesanato) sabiam da existência dos documentos, mas, até então, eram considerados perdidos, daí sua importância. Os rufos de quatrocentos tambores eram escritos tanto para a ida quanto para a volta da batalha; os últimos eram compostos tendo-se em conta que deviam ajudar os soldados em bom estado a levar os feridos para o acampamento.
A descoberta foi celebrada com muito entusiasmo. Na segunda-feira, procurei Max de Rieux e Jeanneret , meu chefe direto, gerente comercial da Decca, militar de carreira e coronel reformado do Exército francês, e relatei todos os detalhes do almoço.
Começaram imediatamente os trâmites que levariam à gravação dessas marchas, lançadas com grande alarde num EP intitulado “As marchas imperiais de Napoleão Bonaparte”. A gravação era imponente e reproduzia plenamente a sensação que os milhares de soldados deviam sentir ao marchar, descendo em formação de quadriláteros das colinas ainda encobertas pelo silêncio e pela névoa, nas primeiríssimas horas da madrugada, imbuídos da consciência de defender sua pátria e dispostos a morrer por ela. A devoção dos franceses ao imperador fez desse pequeno disco um grande sucesso.
Tirando esses momentos de glamour, eu continuava vendendo meus discos nos subúrbios, embora me considerasse o Rei do Disco. A música “I Love Paris”era o sucesso do dia, na voz da Ella Fitzgerald. O chachachá de Perez Prado era a dança obrigatória nos clubes noturnos, até que um acontecimento ligado à guerra colonialista contra os argelinos prenunciou mudanças nessa minha grande felicidade.
Disco de 45 rotações, conhecido como Extended Play. “I Love Paris”, de Cole Porter (1953).
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