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segunda-feira, 29 de julho de 2013

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 05


CAPÍTULO 5 


À medida que andávamos pela estrada, aumentava o número de pessoas que se juntavam à nossa caravana, até compormos uma fila de um quilômetro, talvez. E foi com esse contingente que percorremos, a pé, quase 150 quilômetros. Na primeira noite, dormimos ao sereno. Porém, dali por diante, encontramos centros de acolhimento organizados por camponeses, que nos davam comida e refúgio por uma noite, antes de retomarmos a estrada. Ficávamos felizes por termos sido socorridos, e tristes por não termos sido convidados a permanecer. 

Os aliados — para não dizer os americanos e os ingleses — tinham destruído a força aérea alemã de tal maneira que dominavam o ar e vigiavam constantemente o movimento nas estradas, bombardeando e metralhando comboios, tanques, caminhões ou qualquer coisa que fizesse um movimento estranho. 

Os aviões de caça, sempre em bandos de quatro ou cinco, rondavam lá em cima, olhando para nós, e nós para eles e para o nosso infortúnio.Algumas vezes, o nosso grupo, que mais se assemelhava ao “Exército de Brancaleone” parecia aos pilotos, do alto dos aviões, colunas de soldados disfarçados. De repente, os aviões se alinhavam, um atrás do outro, como se fossem nos acompanhar. Em vôo rasante, metralhavam a nossa coluna. Pulávamos para os barrancos ao lado da estrada, procurando o abrigo das árvores que sempre ladearam as estradas do campo europeu desde os primórdios dos tempos. Ficávamos quietos por uns minutos e nos levantávamos. 

Consertávamos os estragos, enterrávamos os mortos — se houvesse — e retomávamos a marcha até chegar, à noite, ao próximo centro de acolhimento. 

A coluna era um micromundo feito de velhos, mulheres, crianças, cachorros e galinhas. De vez em quando, morria um velho, uma velha fi cava doente, uma criança se machucava; outros tinham os pés inchados e sangrentos.Tivemos que matar o nosso cachorro porque, já sem couro na sola das patas, não podia mais andar... 

Porém, por mais que alguns abandonassem a coluna, ela não parava de crescer. E a recepção nos centros de acolhimento se fazia mais fria à medida que nos aproximávamos de Paris. Já se escutavam reclamações dos refugiados — de que os camponeses não tinham coração, que cobravam, às vezes, pelo pão e pelo leite, e nem os deixavam dormir em suas fazendas sequer por uma noite. 

Minha mãe decidiu, então, que devíamos seguir sozinhos, talvez assim aumentando as chances de sermos acolhidos. Dormimos ao sereno, no mesmo lugar, umas duas noites. Ao retomarmos a estrada, estávamos praticamente sozinhos. Chegando alguns dias depois a uma fazenda, minha mãe implorou que nos dessem abrigo até a situação se tranquilizar. Os camponeses, vendo uma mulher acompanhada somente de duas crianças, permitiram que ficássemos. Fomos alojados num silo cheio de trigo recém-colhido, perto da casa principal. Era o abrigo ideal: as balas se perderiam nos ramos de trigo, assegurando uma proteção perfeita. E os buracos nas pilhas de trigo, nas quais nós, crianças, nos enfi ávamos, eram cavernas e camas maravilhosas! 

Passamos uns 15 dias despreocupados, brincando com os burros, as vacas, os cavalos e os cachorros, numa tranquilidade raramente perturbada, a não ser por alguns aviões de caça Spitfire, que, em uma circunstância, quase nos mataram por estarmos, Paul e eu, em sua linha de tiro.Até que, numa tarde, vimos centenas de alemães fugindo em debandada através dos campos, ouvimos tiros ao longe, a emoção dividida outra vez entre o medo de morrer e a alegria de saber que o fim do pesadelo talvez estivesse por chegar... Seríamos libertados e poderíamos voltar ao tempo de paz. Eu não tinha noção do que era viver em tempo de paz e do que se fazia em tempo de paz. 

Ao final desse dia, vimos um soldado alemão correndo, atordoado, para a direita e para a esquerda, na colina em que estávamos brincando. De repente, ouvimos tiros de metralhadora vindos de algum lugar, o soldado caiu gritando “Russo! Russo!”, e morreu bem longe de sua terra natal. Certamente tinha sido recrutado à força, como tantos outros milhares de homens, nos países do Leste Europeu conquistados pelos alemães. 

O silo de trigo no qual estávamos ficava bem perto de uma colina que subia suavemente por uns quinhentos metros até chegar ao topo e dali des-cia, suavemente também, até o horizonte.Algumas horas antes do sol nascer, Paul me acordou: 

— Dédé, tem um barulho estranho lá fora...Vamos ver o que é! Vamos! 

Fomos nos arrastando até o topo da colina, em direção àquele ruído, que inicialmente parecia com um ronronar de gato e se tornava mais ensurdecedor à medida que chegávamos ao topo. E lá estavam, à nossa vista, centenas de tanques aliados, avançando tranquilamente, encobertos pela neblina de uma manhã de verão. Rumavam na direção de Paris, ainda distante uns cem quilômetros... Estávamos libertados, enfim! Para nós, a guerra estava acabando. Paul e eu voltamos correndo desvairadamente para dar a notícia aos adultos, que, por incrível que pareça, ainda dormiam. 

Todos acordaram aos gritos, cantando a “Marseillaise”anfitriões foram buscar as garrafas de vinho, as garrafas de calvados presuntos e queijos apareceram milagrosamente para celebrar com um extraordinário café da manhã aquele momento histórico. 

Era a primeira vez que eu bebia vinho e calvados, e fiquei num pileque monumental, vomitando a alma muitas vezes. No entanto, apesar das pernas bambas, fomos todos até a aldeia para saber as novidades. 

Encontramos os soldados americanos chegando, em duas colunas, marchando grudados às Hino nacional francês. 

Paredes das casas, à direita e à esquerda, procurando em vão o inimigo que, desde o dia anterior, tinha abandonado o lugar. À tarde, a festa continuou. Celebramos a chegada de centenas de caminhões carregando soldados, a quem dávamos maçãs e flores em troca de chicletes, carne em conserva, sabonetes etc. 

No dia seguinte, minha mãe decidiu que tínhamos que regressar o mais rápido possível a Cabourg, a fim de evitar que nossa casa fosse depredada ou saqueada. E assim começamos a viagem de regresso, a pé, nas mesmas estradas que havíamos percorrido na ida, agora cobertas de caminhões transportando soldados aliados, provisões, armamentos pesados e munições para Paris. 

No quarto ou quinto dia de marcha, já perto de Cabourg, os campos — antes verdes — e as estradas estavam todos inundados, tornando a caminhada mais penosa e, sobretudo, mais perigosa, porque uma grande quantidade de minas havia sido largada durante os combates. Olhávamos para o chão e para o céu, para nos afastarmos das colunas negras formadas por milhões de mosquitos, que sobrevoavam as águas paradas, e dos milhares de corvos, que, num banquete obsceno, comiam as vacas podres. 

Enfim, fomos os primeiros a chegar a Cabourg. A casa estava intacta. Depois de muito tempo dormimos numa cama. Na manhã seguinte, fomos tomar banho, coisa que não fazíamos havia muitos meses. Eu, já limpo, mal saía do banheiro, e um barulho estrondoso fez a casa tremer. Passado o primeiro susto, abri a porta para pegar a toalha que eu tinha esquecido, e qual não foi meu espanto ao ver uma fumaça preta, densa, fedendo a pólvora, e o céu azul à vista, através de um enorme buraco no teto? Descobrimos, mais tarde, que a casa tinha sido atingida pelo motor de um avião que passava... 

Pouco a pouco, os habitantes de Cabourg voltavam para a cidade. E de julho a outubro começou para nós, crianças, um tempo de férias excepcional! Nossos brinquedos eram as embarcações que haviam transportado os soldados, que agora jaziam abandonadas nas praias; os tanques semidestruídos, soltos nos campos; os canhões, ainda em bom estado, que faziam parte das fortificações alemãs; as próprias fortificações; os planadores; as metralhadoras; os revólveres e os armazéns de munições, além dos uniformes abandonados pelos soldados, alemães e aliados... Benditos uniformes!, que logo substituíram nossas roupas gastas e fedorentas. Pela manhã, nós — as crianças — saíamos pelas praias e pelos campos fantasiados de americanos, de ingleses e de alemães, armados de fuzis, metralhadoras e revólveres, e partíamos para a luta, atirando com munições verdadeiras sobre nossos inimigos do dia. A nossa excitação chegava ao auge quando atirávamos de canhões das fortificações em direção ao mar ou quando, instalados nos tanques, atirávamos sobre outros tanques ao longe. Esgotados, porém felizes, só à noite regressávamos à casa para comer, tendo tido o cuidado de largar os armamentos num esconderijo qualquer. 

Em outubro, Hubert , Gerard e eu voltamos para o Colégio Sainte-Croix. Foram os meus tempos mais felizes de estudante. Estudava com prazer. Sendo um dos internos mais antigos, era muito amparado pelos jesuítas. Era um líder frente aos recém-chegados. E estava apaixonado por uma menina do Colégio SainteMarie, que eu, da janela, via passar todos os dias quando ela voltava para casa, e viria a encontrar em Cabourg, onde sua família passava o verão. Nunca cheguei realmente a falar com ela, de tanto que meu corpo e minha cabeça tremiam ao vê-la.

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