CAPÍTULO 3
Soube da declaração de guerra de 1939, a Segunda Guerra, quando estava com minha mãe em Nice, na casa da minha terrível avó materna. Era um fim de tarde na praia, quando, de repente, os alto-falantes interromperam a transmissão das músicas de sucesso do dia e uma voz anunciou a notícia de que a França iria combater a Alemanha... Um silêncio pesado cobriu a praia e senti, sem ter ainda a mínima noção do que era uma guerra, a gravidade do momento.
Os meses se passaram e as pessoas já chamavam essa guerra, que ainda não era guerra, de drôle de guerre, quando, de repente, no verão de 1940, os alemães decidiram atacar.
Mme. Faucheux , minha mãe e eu tínhamos ido, semanas antes da chegada dos alemães a Paris, para Berri, uma região tranqüila no centro da França, e ali ficamos esperando o desenrolar dos acontecimentos.
Um belo dia, ouvimos ao longe os sinais da batalha que se aproximava rapidamente, e minha mãe decidiu que era mais prudente dormir nos campos de trigo, uma vez que a casa onde estávamos hospedados podia cair por cima de nossas cabeças se fosse atingida por tiros de canhões. Fomos para lá ao anoitecer, e encontramos uma bela árvore para a gente se encostar. Dali a pouco, começaram a chegar os soldados franceses, correndo através dos campos, fugindo do ataque alemão, passando bem pertinho de nós. Os tiros de fuzis e de metralhadoras estouravam por todos os cantos; ecoavam ordens tanto em francês como em alemão, e cada vez mais em alemão. Então, surgiram alguns tanques alemães passando a toda velocidade. E, no meio dessa confusão, minha mãe dormia profundamente ao sereno, encostada na árvore, roncando com galhardia. Eu, apavorado, a cutucava:
— Manou, não ronca, não... Não ronca, não… Eles vão descobrir que estamos escondidos aqui...
Vivemos, a partir desse momento, e durante os cinco anos seguintes, sob a ocupação do Exército alemão.
Em 1941, minha mãe resolveu se mudar para Cabourg, onde comprou uma confeitaria. Fiquei em Suresnes para continuar os estudos e morei durante um ano na casa de uma amiga sua, mme. David, cujo jardim dava para o forte do monte Valerien, parte de uma rede de fortificações que circundava Paris e protegia a cidade de possíveis invasões inimigas nos séculos XVI e XVII; que, àquela altura, servia de caserna para os soldados alemães.
Eu levantava muito cedo para ir ao colégio, acordado pelo barulho lúgubre dos fuzilamentos dos membros da Resistência francesa, diariamente executados. Era como um sombrio despertador explodindo no meio do silêncio e das brumas da madrugada. As execuções tinham lugar no fosso gigantesco que, antigamente cheio de água, circundava o forte... Em um fi m de semana, na parte da tarde, tive a curiosidade de ir até lá, para ver o que havia no fosso. Nada havia para se ver, salvo alguns cavalos e burros pastando na maior paz do mundo, e soldados alemães tomando banho de sol, esperando chegar a madrugada seguinte e suas novas execuções.
Ao final de 1941, eu já tinha idade para ingressar no colégio como aluno em regime interno, o que significava morar ali, só podendo sair aos domingos, durante as férias de Natal, de Páscoa e de verão, as chamadas “les grandes vacances”.
O regime era severo; porém, eu adorava o Colégio Sainte-Croix, que era um mundo de garotos supervisionados por ótimos padres jesuítas. Pela primeira vez, eu me sentia livre do mundo feminino e, na minha fantasia, vivia numa grande família composta de muitos irmãos, os meus colegas, e amparado por alguns pais, os padres. No entanto, durante esses anos de guerra, a fome e o frio eram problemas que perseguiam a todos…
A carne, as verduras, o trigo, as batatas, as frutas, tudo o que havia de melhor era confiscado e enviado para alimentar as tropas e os civis alemães. E sobravam invariavelmente para nós, franceses, arenque defumado, patê de peixe, nabo e abóbora para o almoço e o jantar. Pela manhã, uma xícara de chicória e um pedaço de pão preto compunham a primeira refeição do dia. O frio, por sua vez, foi ainda mais rigoroso nesse período. Creio que foi no inverno de 1941 que o rio Sena, que atravessa Paris, ficou encoberto de gelo, fato inédito até hoje. Não havia calefação nas casas por completa falta de carvão e, às vezes, não havia sequer como lavar as mãos, pois a água, dentro dos canos, também estava congelada.
Nas férias de verão, ia encontrar minha mãe em Cabourg, pequeno balneário no canal da Mancha, que dava para a costa inglesa, e fazia uma viagem deliciosa de Paris a Lisieux, de cinco a oito horas, num trem que seguia para Cherbourg. Em Lisieux, a gente tomava uma “Maria Fulô”, que chegava sem hora precisa, dependendo do entusiasmo e do fôlego da locomotiva em subir as numerosas colinas que beiravam o mar.A fumaça negra e os pedaços de madeira carbonizada cobriam os passageiros com uma capa de poeira preta. Porém, isso pouco importava, pois dali a pouco a gente chegaria, e já se sentiam as promessas de dias e dias de férias “avec les copains”.
A primeira vez que estive em Cabourg, no verão de 1942, foi na realidade a primeira vez que,
rigorosamente, vivi em tempo de guerra. A praia estava coberta a perder de vista por construções carregando cargas explosivas para impedir o eventual desembarque dos exércitos aliados vindos da Inglaterra pelo mar. Atrás da praia, os alemães haviam edificado centenas de quilômetros de fortificações, as Blockhäuser, em geral conectadas umas às outras, abrigando canhões a cada cinqüenta metros, e tendo frestas nas paredes para acomodar as metralhadoras.Toneladas de arame farpado completavam o sistema de defesa da orla, e havia soldados por todos os lugares. O fato era que, para frequentar a praia, tínhamos que obter uma permissão do Oberführer da cidade. Somente trinta metros estavam disponíveis para esse propósito — no horário das dez às quinze horas — e a ninguém era permitido entrar no mar.
Em pouco tempo, as férias tinham acabado e voltei ao Sainte-Croix para mais um ano de estudos, reencontrando os velhos camaradas e passando em revista os recém-chegados, contingente sempre olhado com desconfiança, até prova em contrário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário