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sábado, 11 de maio de 2013

UMBIGO DO MUNDO

Por Leonardo Tavino


"Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista". "Jesus de Nazaré e os tambores do Cambomblé". As duas emblemáticas frases de Jorge Mautner sintetizam o pensamento, a vida e a obra deste inquieto artista-pensador. No texto "Amálgama do Brasil universal" (em Filosofia e cultura, 2012, p. 110-111), Mautner anota que "os escravos trazidos da África ao chegarem aqui reinterpretam suas crenças religiosas e criam o nosso candomblé que, em primeiro lugar, transforma os Orixás que, em sua origem, são de determinados lugares geograficamente determinados. (...) Os orixás se transformam em arquétipos de várias conexões e novos significados em velocidade quântica. Além do jogo de búzios, onde entra o acaso e a emoção de quem os joga e interpreta, e cujo critério e conteúdo são iguais e paralelos ao princípio e estrutura do cálculo da incerteza matematicamente elaborado por Heisenberg".

Defensor e divulgador do "amálgama Brasil", do país como "vértice da humanidade", Mautner valoriza os processos de mestiçagem, miscigenação, hibridização, sincretização que compõem o povo brasileiro: esta "massa" misteriosa e complexa. "Essa formidável absorção do outro em plenitude de dignidade resplandecente é a característica do povo brasileira! Chineses, japoneses, judeus, sírio-libaneses, e todos os seres humanos de todas as culturas e povos do planeta têm aqui os seus parentes e descendentes, e trazem todas as suas culturas para cá e imediatamente se sentem à vontade e com imensa vontade de se misturar e se miscigenar neste redemoinho de sensações de plenitudes que vem dos mistérios de Macunaíma, e a disposição absoluta de abraçar e amar o próximo porque o próximo é o mistério para ser eternamente desvelado, porque somos todos também tupis-guaranis e nossa mitologia vem do mistério e o nosso destino e missão são se apaixonar por tudo que é estranho, novo, diferente, estrangeiro, forasteiro, desconhecido", anota Mautner (p. 111-112). "Só me interessa o que não é meu", diria Oswald de Andrade no "Manifesto antropófago".

Obviamente, o pensamento de Jorge Mautner vai à contramão dos movimentos que visam definir e delimitar nitidamente as identidades que supostamente constituem isoladamente o Brasil. Sobre o assunto, Antonio Risério explica: "A verdade é que nada, do que chegou ao Brasil, conseguiu manter aqui uma pureza original, pré-brasileira. Por isso mesmo, não existe uma diversidade incontornável separando culturalmente pretos e brancos no Brasil. E não adianta dar murro em ponta de fato. O Brasil não conhece, em escala significativa, situações, experiências ou sistemas hermeticamente isolados" (A utopia brasileira e os movimentos negros, 2007, p. 222).

Mais adiante, Risério observa que "O que temos em nosso espaço geográfico, são diferenças culturais - e não culturas diferentes. É certo que não devemos extrair, das realidades objetivas da mestiçagem e do sincretismo, uma ideologia uniformizadora, apontando para a dissolução última dessas mesmas diferenças. Mas daí a travestir diferença cultural de cultura distinta vai uma enorme distância" (p. 227). E: "A experiência sincrética brasileira aparece hoje, a olhos de observadores estrangeiros que procuram entendê-la, como uma antecipação profunda e bem-sucedida de processos que o planeta passou a experimentar com a globalização. Como antecipação e lição. Com isso, nos tornamos reconhecidos como portadores de uma mensagem de alcance planetário. (p. 415).

"O que Walt Whitman viu / Maiakóvski viu / Outros viram também / Que a humanidade vem / Renascer no Brasil!", cantam Gilberto Gil e Jorge Mautner em "Outros viram". "Isso é muito além do multiculturalismo ou da diversidade cultural, é um salto de qualidade onde a emoção daquele abraço envolve e comanda o ser humano na paisagem da suprema tolerância, irmandade e mutirão", canta Mautner em "Hino da independência em ressurreição permanente".

Por sua vez, Risério diz: "(...) insisto que não temos nenhuma forte razão para substituir o rico espectro cromático brasileiro pelo rígido padrão racial norte-americano (...). Mas o certo é que ninguém vai entender o Brasil se não encarar, em toda a sua abrangência e complexidade, os fenômenos fundamentais da mestiçagem e do sincretismo" (p. 441).

Esse conceito do Brasil como "vértice da humanidade", essa "coisa nova" desenvolvida por Jorge Mautner em sua Triologia do Kaos e presente na já citada canção "Outros viram" - Rabindranath Tagore ("A civilização do amor nascerá no Brasil") e Jacques Maritain ("O único lugar onde a justiça e a liberdade poderão aflorar juntas é o Brasil"), por exemplo, atravessa nosso olhar sobre o país desde sempre. E é isso que, em lados aparentemente opostos, pensadores como Risério e Liv Sovik, autora de Aqui ninguém é branco (2009), investigam.

Para Sovik, é preciso "reler o diálogo entre as experiências do Brasil e dos Estados Unidos em matéria de relação raciais". Para a autora, "A história americana está presente na imprensa e no senso comum brasileiros como referência negativa para o futuro das relações raciais. É importante explicar a relação da experiência brasileira com essa história de tal maneira que não se reitere simplesmente o impasse em torno da segregação versus a mestiçagem" (p. 16).

A utopia de um Brasil-vértice ecoa em várias direções, é uma realidade sentida no cotidiano, como por exemplo na canção "Umbigo do mundo", de L. Cherubini, P. Faschi, M. Centoze, S. Celani e N. Motta. "Isso aqui é o umbigo do mundo / Onde a beleza tem muitas caras / cores e raças, misturas raras / peles de ébano, de sangue indígena / olhos que brilham como esmeraldas / caras mestiças de uma nova era / como o futuro que está chegando / sob o sol no umbigo do mundo / e todo mundo está sambando".

A letra da canção trabalha sobre "a dor e a alegria" de ser e estar mestiço tropical brasileiro. Cantada por Daniela Mercury (Eletrodoméstico, 2003) entre a canção "Nossa gente" ("Nossa gente é quem bem diz é quem mais dança") e a canção "Ilê pérola negra" ("Eu quero penetrar no laço afro que é meu, e seu / Vem cantar meu povo, vem cantar você"), acompanhada pelo Olodum, "Umbigo do mundo" ganha significações múltiplas, amplas. Aliás, é impressionante como uma versão, feita por Nelson Motta, para um rap italiano - "L'ombelico del mondo", hit do rapper italiano Jovanotti" -, interessa e traduz tanto a realidade e o pensamento brasileiros. "Só me interessa o que não é meu", repetiria aqui Oswald, em seu elogio ao nosso instinto caraíba: tupy and not tupy.

"Isso aqui é o umbigo do mundo / ao som do mar / e a luz do céu profundo / fonte de esperança / de uma nova vida / pulmão de uma raça amorosa e sofrida / que canta e dança / e que se veste de luz", canta Daniela em cima do trio elétrico, chamando para a cena os versos do "Hino nacional", de Joaquim Osório Duque Estrada. Já Liv Sovik identifica no Brasil o afeto como "uma metáfora para a unidade nacional, para a maneira brasileira de lidar com a diferença interna. (...) Essa metáfora que associa o carinho ao brasileiro ajuda a transpor barreiras entre o ideal (e a realidade) do Brasil hospitaleiro e os fatos, visíveis em cada esquina, da desigualdade social e racial" (p. 34-35).


Sobre Daniela Mercury, Liv Sovik se questiona: "No contexto das figurações da identidade racial consumidas pelo grande público, pensando a partir da branquitude como valor, qual é o sentido da identificação de Daniela Mercury com a cultura negra?". Para mais adiante responder: "Daniela é uma artista branca autorizada pelo seu público a identificar-se com gêneros culturais negros" (p. 162-163): "Ela representa menos uma mediação da cultura negra por uma branca, do que a carnavalização da própria mediação" (p. 164).

Goli Guerreiro em A trama dos tambores (2000) anota que "a cantora Daniela Mercury se inspira nas coreografias dos blocos afro como Ilê Aiyê para construir seu 'dendê-style'" (p. 232). Por minha vez, penso que Daniela em cima do trio cantando "a cor dessa cidade sou eu" é mais sintoma e menos causa, mais amálgama e menos reforço de segregação. Exigir uma "posição branca" versus uma "posição negra", sem perceber que o Brasil se faz no meio, é importar uma marca norte-americana que não existe no Brasil e que só reforça a intolerância ao invés de promover igualdades. Comentando uma observação de Antonio Cícero, Risério anota que "o paradoxo do Brasil está em, não tendo conseguido enfrentar problemas que muitos países já resolveram, ser capaz de oferecer a prefiguração da solução de problemas que poucos países conseguem enfrentar" (p. 423).

"No Brasil, a realidade é outra. A presença negra não é apenas visível - é vistosa e sonora, em nossa vida mestiça altamente sincrética. Tivemos máscaras, recalques e repressões, mas a verdade é que as formas culturais negras sobreviveram e se impuseram, aqui, por conta de nossa formação. Por processos de permanência, mistura e recriação, que as nossas condições sociais e culturais de vida tornaram possíveis", observa Antônio Risério (p. 412-413). "Isso aqui é o umbigo do mundo / poço sem fundo da imaginação / deus e diabo / entre o céu e o chão / selva e cidade / litoral, sertão / ondas sonoras, ritmo paixão / onde os amores se transformam em canção / onde as regras são exceção / vida batida na palma da mão", canta a "travesti" Daniela (“branca com máscara negra”).

Sovik usa a visibilidade (a aceitação e o alcance de mercado e de mídia) de Daniela em contraposição à atuação pouco recebida do trabalho da excepcional Margareth Menezes. Mas esquece que “a cantora negro-mestiça baiana chegou a ser barrada no Ilê Aiyê, por não ter sido considerada suficientemente black para dançar no bloco ao longo do desfile carnavalesco”, como anota Risério (p. 73). O exemplo é lapidar e serve como mais um complexificador das fronteiras sociorraciais brasileiras.

Não podemos negar as injustiças sociais que nos afetam a cada instante, e que se refletem, por exemplo, no apartheid do carnaval baiano. Pelo contrário: é encarando de frente tais crueldades, com a valorização e o entendimento - sem separação nítida entre "as partes" - que nos manteremos opostos ao vergonhoso apartheid norte-americano. Ou seja, "aprofundar o padê – e não pregar o apartheid".

Sobre a dor e a alegria do Brasil ser vértice de humanidade, umbigo do mundo, fecho com Risério: "Utopia? Sim. Mas utopia realista. (...) O utopista realista é mais modesto. Em vez de dedicar à confecção mental de um mundo, ou de um mundo inteiramente novo, concentra-se na transformação criativa deste nosso mundo real, desenhando e antecipando metas e projeções possíveis de acontecer. Assim, a utopia realista é o sonho que está ao nosso alcance" (p. 423).


***

Umbigo do mundo
(L. Cherubini / P. Faschi / M. Centoze / S. Celani / N. Motta)


Isso aqui é o umbigo do mundo
Isso aqui é o umbigo do mundo


Onde a beleza tem muitas caras
cores e raças, misturas raras
peles de ébano, de sangue indígena
olhos que brilham como esmeraldas,
caras mestiças de uma nova era
como o futuro que está chegando
sob o sol no umbigo do mundo
e todo mundo está sambando

Isso aqui é o umbigo do mundo
poço sem fundo da imaginação
deus e diabo
entre o céu e o chão
selva e cidade,
litoral, sertão
ondas sonoras, ritmo paixão
onde os amores se transformam em canção
onde as regras são exceção
vida batida na palma da mão

Fonte incessante
de uma nova energia
ponto de encontro entre
o silêncio e o som
é o tempo que samba
na voz de João
na nova batida
que inventa a nação
na beira da praia
no eterno verão
na moça que passa
na voz do violão
no balanço da bossa
de Vin e de Tom
num rio de poesias
num mar de canções

Isso aqui é o umbigo do mundo
ao som do mar
e a luz do céu profundo
fonte de esperança
de uma nova vida
pulmão de uma raça amorosa e sofrida
que canta e dança
e que se veste de luz
a força e a magia
de seus corpos nus
sob o sol no umbigo do mundo
essa é a magia que vem lá do fundo

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