Estúdio costumava receber orquestras inteiras.
Silvio Essinger
RIO - O endereço é o quinto andar de um prédio na Rua Joaquim Silva, na Lapa, a alguns passos da Escadaria Selarón. Quem chega se surpreende com o tamanho do estúdio, que costumava receber orquestras inteiras, nos anos 1960, para a gravação de LPs de sucesso, como os do grupo Românticos de Cuba e da série “Violinos mágicos”. Paredes revestidas de pedra e uma mesa de som Amek, analógica e rara, permanecem no espaço. Mas hoje, quase 50 anos após ter sido montado ali pelo cantor Nilo Sérgio, morto em 1981, o estúdio da finada gravadora Musidisc está prestes a se extinguir. Há um mês, depois de muito resistir, o filho do fundador, Nilo Sérgio Pinto, pôs o imóvel à venda.
— Passei aqui mais da metade da minha vida — conta o produtor fonográfico de 56 anos, 35 deles trabalhando ali, já que, após o fim da gravadora, o espaço seguiu funcionando como estúdio. — Eu já estava meio de saco cheio. Depois da saída do (sócio e técnico de som Marcelo) Sabóia, em outubro, tentei trabalhar com outras pessoas, mas não deu certo. Aí recebi uma proposta para me mudar do Rio e decidi vender o imóvel. Ainda espero deixá-lo para alguém que queira mantê-lo como estúdio. Arrancar tudo daqui seria triste.
Nilo já começou a retirar do estúdio as fitas originais com cerca de quatro mil fonogramas que, durante a existência da Musidisc como gravadora (entre 1952 e 1971), renderam, em suas contas, algo entre 400 e 500 discos. Daqui para a frente, ele quer se dedicar à revisão dos contratos com os artistas para lançar digitalmente todo o acervo da Musidisc. O carro-chefe da coleção, até hoje, é o conjunto de boleros dos Românticos de Cuba. Mas não faltam pérolas do sambalanço (discos do organista Ed Lincoln e dos cantores por ele lançados, Orlandivo, Silvio César e Pedrinho Rodrigues), do samba (LPs do grupo Voz do Morro, do qual fizeram parte Paulinho da Viola, Elton Medeiros e Nelson Sargento), da bossa (Primo Trio, Breno Sauer Quarteto), da música instrumental (Altamiro Carrilho, Booker Pittman) e do rock (Bango).
— Há vários discos dos Românticos de Cuba no iTunes, mas nenhum deles é meu. Eles chegaram lá por causa de contratos antigos que a gente tinha com o México — conta Nilo, que não pensa mais em lançar CDs (em breve, sai um dos derradeiros, com um dos discos “Parada de dança”, do organista Djalma Ferreira).
Cantor da Rádio Nacional, com bons contatos no exterior, Nilo Sérgio fundou a Musidisc para representar no Brasil gravadoras americanas que lançavam discos de música orquestral. Aos poucos, ele foi lançando suas próprias produções, como os Românticos de Cuba e os Violinos Mágicos, orquestras que só existiam em disco: a formação dependia dos músicos que conseguia arregimentar para as gravações.
— Meu pai foi artista, e sabia como essa turma da música era complicada. Então, ele resolveu criar o artista virtual — conta produtor fonográfico. — Os músicos desses discos, geralmente, eram Zé Menezes, Chiquinho do Acordeom, Abel Ferreira, Rubens Bassini, entre outros. Os LPs do saxofonista Bob Fleming, por exemplo, foram gravados por Moacyr Silva e Zito Righi. Meu pai normalmente fazia os discos no estúdio da CBS, ou na Escola de Música da UFRJ. Em 1963, ele resolveu montar um estúdio mesmo, o primeiro que gravava em quatro canais no Brasil. A gente conseguia fazer um produto de bastante qualidade, brigando com as multinacionais.
— A sonoridade dos discos gravados no estúdio da Musidisc era diferente, mais limpa. E o Nilo Sérgio tinha um outro conceito de mixagem. Enquanto os outros produtores botavam a voz do cantor na frente, ele a deixava no mesmo nível da orquestra — recorda-se Silvio César, que começou sua carreira na gravadora.
O produtor Guto Graça Melo tem boas lembranças do estúdio. Seu início na vida musical foi como integrante do grupo vocal Vox Populi, que gravou um LP pela Musidisc:
— Eu era muito jovem, mas me lembro que ele soava muito bem e tinha um bom equipamento. É um estúdio emblemático, uma pena que vá fechar.
Na Musidisc, Nilo Sérgio lançou novidades como o que chamou de minidisc, disco do tamanho de um compacto com cinco músicas de cada lado. Por causa do grande sucesso dos Românticos de Cuba, a gravadora chegou a ter um escritório em Nova York, que, num lance insólito da Guerra Fria, foi invadido pelo FBI em 1962, durante a crise dos mísseis de Cuba.
Aos poucos, porém, com as dificuldades em importar vinil pós-1964 e a saída de funcionários para outras gravadoras, a Musidisc resolveu encerrar atividades como gravadora. Nilo Sérgio Pinto começou a trabalhar no estúdio em 1978 e parou em 1980, para concluir seu curso de Arquitetura. Mas, com a morte do pai, teve que assumir o negócio.
Desde então, a Musidisc veio sobrevivendo basicamente como estúdio. Nos últimos tempos, prestou serviços de gravação e de mixagem para DVDs de Dona Ivone Lara, Paula Fernandes e Alexandre Pires. Nilo Sérgio ainda fez, por conta própria, alguns lançamentos em CD dos discos da Musidisc — enquanto via edições piratas tomarem seu espaço. O selo inglês Whatmusic e o brasileiro Discobertas foram dos raros que negociaram com ele a reedição remasterizada de alguns discos, o que colaborou para pôr de volta no mercado discos de Ed Lincoln, Orlandivo, Vox Populi e do baterista Luciano Perrone (a série “Batucada fantástica”).
Hoje, Nilo Sérgio Pinto sonha reeditar digitalmente discos que permaneceram no vinil, do Trio Surdina (do violonista Garoto com o violinista Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeom), Carioca e sua Orquestra, Primo Trio, Pedrinho Rodrigues... E reunir em livro a história da Musidisc.
— Tenho que aproveitar enquanto os personagens ainda estão vivos — diz.
Romantismo enganoso nas fotos das capas
Um maiores sucessos dos Românticos de Cuba foi a série de LPs “Internacional”, cujas capas traziam cada uma, um pedaço de uma foto de corpo inteiro de uma sedutora loura. Era uma imagem tão viva na lembrança dos antigos compradores dos discos da orquestra que, recentemente, quando organizou uma caixa com CDs dos Românticos, a gravadora Som Livre pediu justamente aquela foto para usar na capa do lançamento. O que fez com que Nilo Sérgio Pinto desse algumas boas risadas, já que a tal loura boazuda da foto era, na verdade, um bem apessoado rapaz com uma peruca loura. Uma brincadeira armada nos pelo fotógrafo Joselito, nos áureos tempos da Musidisc, confiando que ninguém iria perceber a diferença. A caixa da Som Livre, por sinal, ostenta a tal foto.
Psicodelia brasileira pirateada no exterior
Uma das poucas incursões da Musidisc no ramo do rock foi o Bango, grupo que começou na jovem guarda, como Os Canibais, e que depois renasceu rebatizado e convertido à psicodelia de Cream e Jimi Hendrix. Com dois integrantes que, anos mais tarde, se tornariam figurões da indústria fonográfica (Aramis Barros e Max Pierre), o Bango gravou, em 1971, um álbum que despontou para o anonimato. Mas que, nos anos 2000, pela via da internet, virou uma cultuada raridade da psicodelia mundial, acabando por ser relançada, de forma pirata, em vinil, no exterior. Nilo Sérgio descobriu a malandragem num site americano e foi atrás dos direitos de produtor da Musidisc — o que acabou conseguindo, após um bom tempo de procura pelo selo que havia lançado o LP.
O mistério do cantor de ‘Bossa maximus’
Um disco de bossa nova muito simpático, chamado “Bossa maximus”, foi um dos itens do catálogo da Musidisc que mais chamaram a atenção dos ingleses da Whatmusic. O balanço suave de faixas como “Meu Rio” e “Cantiguinha” garantiu lugar para o LP entre os relançamentos remasterizados do selo. Só que havia uma questão que nenhum dos ex-funcionários da gravadora, colecionadores de discos ou pesquisadores sabia responder: Quem afinal era Carlos Lee, o cantor que assinava o disco e que, supostamente, aparecia na capa, em uma foto num saveiro, na enseada da Urca? Segundo Nilo Sérgio, mesmo anos depois da reedição do disco no exterior, ninguém foi capaz de dizer qual o paradeiro do cantor ou mesmo dar alguma informação sobre ele.
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