Dividido em quatro partes, apresentaremos ao longo desse mês o trabalho de conclusão de curso do jornalista Gustavo Bolognani Martins, que procurou ter a rima dentro da MPB como temática. O trabalho foi orientado pelo professor Claudio Júlio Tognolli e apresentado em junho de 2007.
RESUMO
O trabalho em forma de reportagem pretende mapear, por meio da contagem das rimas mais recorrentes da música brasileira de 2001 a 2005, quais são os lugarescomuns da nossa lírica popular. Por meio de entrevistas com compositores, estudiosos e jornalistas, traça-se um painel da importância das letras na assimilação popular de uma canção, da permanência de idéias do Romantismo na cultura de massa, das variantes que estão em jogo no sucesso ou rejeição de um gênero musical e do papel da imprensa perante o gosto popular como formadora de opinião.
PALAVRAS - CHAVE
Lugar-comum, música brasileira, jornalismo, popular, cultura, Romantismo.
ABSTRACT
The present essay engages to discover, through the counting of the most recurrent rhymes in Brazilian music from 2001 to 2005, which are the commonplaces in our popular lyrics. Through interviews with composers, scholars and journalists, a panel is drawn on the importance of the lyrics in popular assimilation of a song, the permanence of Romantic ideas on mass culture, the matters of success and rejection of a musical genre and the role of the press as opinion former in front of popular taste.
KEYWORDS
Commonplace, Brazilian music, journalism, popular, culture, Romantic.
Sumário
01 - Dos objetivos
02 - Dos motivos
03 - Das rimas
04 - Do método
05 - Dos resultados
06 - Conclusão
01 - Dos Objetivos
O tema do presente trabalho, desde sua proposição em meados de 2005, pareceu-me de um apelo jornalístico inegável. A todos para que expunha que faria uma pesquisa sobre as rimas mais recorrentes da música popular brasileira, recebia a mesma reação estimulante de curiosidade e interesse, atributos que, sem querer teorizar muito sobre o que é notícia ou não, parecem-me inerentes a uma boa pauta jornalística.
Definido o tema, considerei apropriado adotar o método e postura utilizados por Claudio Tognolli em seu livro Sociedade dos Chavões: a partir da pesquisa em fontes reais, mapear um catálogo de clichês tendo em mente não seu banimento, mas uma investigação sobre seu significado e relevância. Não por acaso, convidei o professor Tognolli para orientar este trabalho.
Parti então em busca do material acadêmico preexistente sobre o assunto. Não esperava encontrar estudos do gênero no campo do jornalismo, mas foi com certa perplexidade que descobri também não existirem trabalhos com essa abordagem – catalogar e analisar as rimas mais recorrentes na música, nem mesmo na poesia – no campo dos estudos literários. O que me pareceu bom
sinal, a princípio: além de um tema para meu Trabalho de Conclusão de Curso, tinha em mãos um assunto inexplorado pela academia.
A primeira entrevista que realizei, porém, apresentou uma possibilidade bem menos otimista. Luiz Tatit, professor de literatura na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de diversos trabalhos sobre a canção popular brasileira, não recebeu a idéia de tema com a empolgação que eu (ingenuamente, admito) esperava encontrar. Oferecendo, em troca, a sinceridade que faltou aos amigos de Ícaro quando este quis sair voando por aí, Tatit questionou-me se tal abordagem teria alguma relevância teórica, ou mesmo prática, já que as rimas em música popular seriam muito mais um acessório fonético para a transmissão da mensagem do que uma preocupação artística em si. Não tinha resposta consistente em mãos: saí-me com a justificativa que, caso não detectasse nada relevante em minha pesquisa, poderia ao menos colocar uma placa de “Sem Saída” para os próximos desavisados que se metessem na malfadada vereda teórica. Estaria ajudando a Ciência, de certa forma...
Já o também professor da FFLCH/USP Ivan Teixeira, minha referência indispensável sobre assuntos da língua e literatura portuguesa, animou-se com o objeto de análise, mas reprovou-me no método. Àquela altura da pesquisa já tinha-me decidido pela tabulação dos pares de rimas para análise quantitativa, estava até bem adiantado nela. Teixeira opinou, não sem razão, que um estudo do tipo carregava consigo o risco de querer apontar um “certo” e “errado”, ou ainda “bom” e “ruim” na composição de uma letra popular, intuito visivelmente anacrônico e infrutífero. Não há (e decerto nunca haverá) consenso sobre um método de valoração para construções poéticas, mas uma análise numérica com certeza não seria a resposta.
Garanti ao professor que não era minha intenção apontar o que é “melhor” ou “pior” na composição de músicas populares. Movia-me a pura curiosidade de descobrir quais seriam os pares de palavras mais lembrados nos momentos de inspiração (ou, na pior das hipóteses, de reprodução intencional) dos letristas, buscando possíveis elos entre tais palavras e o imaginário do público que as consome. E, também, detectar objetivamente se haveria lugares-comuns mais comuns que outros, por assim dizer. Sem fazer esta contagem, argumentei, seria difícil afirmar qualquer coisa sobre as rimas que não fosse mera especulação.
Ivan Teixeira sugeriu-me, então, que fizesse um estudo analítico e qualitativo das três letras de cada gênero musical que me parecessem mais relevantes, que as destrinchasse, comparasse-as em seus pormenores construtivos e daí tirasse conclusões mais embasadas sobre a utilização das rimas na música popular, proposta que acabei incluindo (em menor escala, por questões de tempo hábil) no último capítulo deste trabalho. Mantive, porém, a contagem de rimas como mote principal, por acreditar que atenderia melhor ao gancho jornalístico que inspirou o TCC, buscar a rima mais recorrente da música brasileira.
Perifericamente, esta reportagem também tem como intuito abordar sem muitos preconceitos o fenômeno de massa que é a música sertaneja, que no contexto atual de pirataria sem controle perdeu o posto de gênero mais vendido no país1, mas ainda está entre os mais ouvidos por todas as faixas etárias e classes sociais2. E que, como é comum aos produtos de massa, passa ao largo tanto dos estudos acadêmicos quanto do interesse do jornalismo cultural.
02 - Dos Motivos
Como todo garoto que gosta de música, tem um lado exibicionista e é tímido com o sexo oposto, em determinado momento de minha vida decidi ter uma banda. Fazia as músicas, escrevia as letras e obtinha acenos também tímidos de apoio dos meus amigos e amigas. Certo dia, um dos guitarristas da banda apresentou uma composição que havia escrito após o término de um relacionamento curto, porém intenso (era o que ele dizia, pelo menos). A letra, que o guitarrista cantava com indisfarçada pomposidade operística, parecia-me um pouco exagerada para o fim de um namoro que durara menos de trinta dias:
Tua beleza não se compara
Nem com as ondas do mar
Fico lembrando daquele dia
A força do teu olhar
Tento esquecer daquele momento
Mas está tudo dentro de mim
Você mexeu com meu sentimento
E tudo que penso é por quê o fim
Não consigo nem te olhar
Sem querer te abraçar
Por mais que você diga não
Você ficou no meu coração
A música se chamava Teu Olhar, e não me agradou nem um pouco. Primeiro pela opção da segunda pessoa do singular, que não soava nada espontânea para uma banda de rock e dava todo um ar de “estou lendo poesia” à declamação. Segundo, e ainda mais intenso, pelos pares de rimas que utilizava, “mar/olhar”, “momento/sentimento”, “não/coração”. Cada uma delas soava como topadas em tijolos para mim, mas por não conseguir verbalizar a implicância nem desejar pôr em risco a democracia interna da banda, concordei que a música entrasse no repertório.
O leitor, cínico, já deve ter imaginado que foi a canção que mais obteve sucesso com o público, principalmente feminino. Ao contrário de minhas verborrágicas, lexicais e semipolitizadas letras de música, o refrão cafoninha da balada do guitarrista foi decorado rapidamente, e por conseguinte era sempre requisitado nas apresentações.
Como tinha sido eu o arranjador tanto dessa balada quanto das outras músicas, que sonoramente não diferiam muito, fui forçado a concluir que o sucesso da canção estava ligado principalmente à sua letra. A partir de então, comecei a ruminar sobre os elementos que facilitavam a memorização de uma música, e as rimas saltaram à vista como um dos mais importantes.
Fazia idéia que a “identidade sonora entre dois versos a partir da última sílaba tônica” se prestava à fixação de uma letra na memória. De outra forma, seria muito difícil ver rappers recitando seus discursos quilométricos sem que fossem atores treinados. Mas havia um detalhe para o qual não tinha atentado:
o vocabulário das rimas também é importante. Isso porque minhas músicas também tinham rimas, em formatos ABCB tão ortodoxos quanto os de Teu Olhar, mas insistiam, por alguma razão, em fugir dos pares de palavras que o guitarrista considerava “mais bonitos para o ouvido”.
Anos após os fatos acima descritos, meu trabalho como jornalista da área de cultura permitiu constatar diversas vezes que de fato um certo vocabulário limitado tinha maior efetividade para a memorização e subseqüente sucesso de músicas populares3. Outra impressão recorrente era a de que haveria uma predisposição inata do público brasileiro para absorver melhor canções com arroubos românticos, reclamações de traição e relacionamentos interrompidos, de preferência numa intensidade que beira o inverossímil. Mas eu resumia toda essa idéia em apenas uma frase quando a expunha em conversas informais:
“O brasileiro é, acima de tudo, um cafona.”
Dito assim, sem rodeios, o argumento fica obviamente mais vulnerável. Meus debates com apreciadores de gêneros musicais que se enquadram no termo “cafona” tendiam a aquecer-se nesse ponto, quando a réplica mais comum era de que eu não podia afirmar uma coisa dessas sem conhecer os ditos gêneros a fundo. Minha tréplica seguia em direção às rimas, citando de memória os pares que considerava aparecerem com mais freqüência naquelas letras, e com eles em mãos dizia que os autores não podiam estar sendo sinceros se ligavam sempre as mesmas palavras umas às outras. Ao que me respondiam que eu não tinha como provar que uma rima é mais “manjada” que outra apenas por intuição, sem nenhum tipo de contagem. Em seguida alguém emendava o clássico “gosto não se discute”, e este era geralmente o momento em que eu me via obrigado a chamar o garçom e mudar de assunto.
Considero essa afirmação, “gosto não se discute”, de uma inadimplência mental constrangedora. Ela depõe contra o próprio jornalismo – se as opções estéticas não devem ser discutidas, melhor seria que os cadernos culturais viessem apenas com uma lista de todas as músicas, peças, filmes, livros e atrações disponíveis a seus leitores. E se há alguma coisa que posso dizer ter aprendido durante minha graduação na ECA é que o jornalismo não é mera listagem ou descrição de fatos: é contextualização, debate, pesquisa e exposição do contraditório.
No exercício da profissão, diversas vezes recebi emails de leitores espezinhando-me por ter criticado determinado show ou disco, apelando para o “gosto não se discute”. Invariavelmente eram fãs do artista/objeto resenhado, que sem perceber já estavam discutindo seu gosto comigo. Sempre respondi com um argumento que acredito muito, de que os fãs fazem uma confusão entre a discussão cultural e o julgamento de suas escolhas pessoais. Do mesmo modo, quando um cronista esportivo compara dados e afirma que o Corinthians foi o time que mais fez faltas violentas num campeonato, ele não está querendo dizer que seus torcedores são piores que os outros, está apenas trazendo mais argumentos para o debate.
Ou, tentando novamente resumir: “Gosto não se pune, mas se discute”.
Para além de toda discussão estético-emocional, outra singularidade me fazia considerar a rima importante: ela costuma ser basilar na composição da letra, muitas vezes ditando o tema do próximo verso ou de toda a estrofe em função de uma palavra que melhor “encaixe”.
Por exemplo: escreve-se um verso satisfatório que termina em “olhar” (termo A), mas não se tem ideia pronta para o seguinte. O método mais chucro de composição consiste em pensar numa outra palavra que rime bem com “olhar”, “mar” por exemplo (termo B), e construir os versos seguintes como uma ligação entre as duas pontas. O termo B, portanto, é muito mais uma solução prática que uma intencionalidade lírica, condicionada ao repertório de “palavras poéticas” do compositor (isso considerando que a escrita seja linear, o que é bastante razoável). Era o que acontecia com minha malfadada banda, pelo menos.
Por garantia, interpelei o cantor e compositor Rogério Flausino, do grupo mineiro Jota Quest, sobre seu método de composição de letras. Assíduo freqüentador da parada de sucessos na última década, ainda que algumas vezes por meio de canções que não utilizam rimas, Flausino corroborou a impressão:
Existem dois processos: o primeiro é o de escrever sem pensar em ser canção, e o segundo é quando já temos uma melodia pronta. Para o primeiro, escrevo uma frase ou uma palavra e saio escrevendo meio sem rumo, buscando ganchos, e a cada verso concluído parto para outro, também sem rumo, mas já com uma métrica deixada pelo verso anterior
O grifo é meu, para destacar que, apesar de Flausino afirmar que a métrica o guie mais do que as rimas, a composição verso-a-verso em busca de ganchos do próximo com o anterior é verossímil. Tem sua lógica, também: estranho seria se um compositor escrevesse todas as suas estrofes de uma vez, sem construí-las de um ponto de partida (a não ser em casos de fluxo de consciência, que não são nada comuns em música popular). O que pode mudar são os “ganchos” escolhidos – e uma das intenções deste trabalho é mostrar que as rimas são o grande “gancho” de nossos compositores populares, merecendo, portanto, uma análise em separado, já que podem sintetizar com eficiência sua lírica e retórica.
Com certa impetuosidade teórica, pode-se até afirmar que o estudo das palavras mais utilizadas em rimas seria uma forma de analisar o envolvimento de um compositor para com suas letras, se ele tem de fato intencionalidade criativa no que escreve ou se está apenas fazendo versos como pontes para pares de lugares-comuns. Afirmação arriscada, porém merecedora de checagem.
Outro estímulo apareceu-me durante a própria pesquisa. Um tanto surpreso, constatei que a porcentagem de músicas do gênero sertanejo romântico era muito relevante nas letras analisadas, a despeito do espaço quase nulo que a mídia dedica a esses artistas hoje (falo de mídia impressa, mas a televisão também diminuiu bastante seu espaço para o gênero).
A situação sugeriu diversos questionamentos interessantes, para os quais a conversa com o jornalista do Estado de S. Paulo Jotabê Medeiros foi particularmente útil: A que se deve essa distância entre as pautas e o gosto popular? Preconceito ou autopreservação? Teria o jornalismo considerado a batalha contra o “mau gosto” perdida, preferindo se isolar no que considera que seus leitores deveriam ouvir? Como argumentar que o público de jornais não ouve sertanejo, se uma rádio dedicada apenas ao gênero é líder de audiência em todos os segmentos e faixas etárias? Teria o rádio já se tornado um meio obsoleto de consumo de música?
A oportunidade de tratar com a cultura popular direto na fonte, como é o caso do pequeno fenômeno da Rádio Tupi em São Paulo, também mostrou-se atraente na feitura deste trabalho. Sem proselitismo nem receio de expor meus preconceitos, escrevo estas linhas ciente que até mesmo uma eventual irrelevância dos resultados obtidos não terá tornado o esforço injustificado.
02 - Dos Motivos
Como todo garoto que gosta de música, tem um lado exibicionista e é tímido com o sexo oposto, em determinado momento de minha vida decidi ter uma banda. Fazia as músicas, escrevia as letras e obtinha acenos também tímidos de apoio dos meus amigos e amigas. Certo dia, um dos guitarristas da banda apresentou uma composição que havia escrito após o término de um relacionamento curto, porém intenso (era o que ele dizia, pelo menos). A letra, que o guitarrista cantava com indisfarçada pomposidade operística, parecia-me um pouco exagerada para o fim de um namoro que durara menos de trinta dias:
Tua beleza não se compara
Nem com as ondas do mar
Fico lembrando daquele dia
A força do teu olhar
Tento esquecer daquele momento
Mas está tudo dentro de mim
Você mexeu com meu sentimento
E tudo que penso é por quê o fim
Não consigo nem te olhar
Sem querer te abraçar
Por mais que você diga não
Você ficou no meu coração
A música se chamava Teu Olhar, e não me agradou nem um pouco. Primeiro pela opção da segunda pessoa do singular, que não soava nada espontânea para uma banda de rock e dava todo um ar de “estou lendo poesia” à declamação. Segundo, e ainda mais intenso, pelos pares de rimas que utilizava, “mar/olhar”, “momento/sentimento”, “não/coração”. Cada uma delas soava como topadas em tijolos para mim, mas por não conseguir verbalizar a implicância nem desejar pôr em risco a democracia interna da banda, concordei que a música entrasse no repertório.
O leitor, cínico, já deve ter imaginado que foi a canção que mais obteve sucesso com o público, principalmente feminino. Ao contrário de minhas verborrágicas, lexicais e semipolitizadas letras de música, o refrão cafoninha da balada do guitarrista foi decorado rapidamente, e por conseguinte era sempre requisitado nas apresentações.
Como tinha sido eu o arranjador tanto dessa balada quanto das outras músicas, que sonoramente não diferiam muito, fui forçado a concluir que o sucesso da canção estava ligado principalmente à sua letra. A partir de então, comecei a ruminar sobre os elementos que facilitavam a memorização de uma música, e as rimas saltaram à vista como um dos mais importantes.
Fazia idéia que a “identidade sonora entre dois versos a partir da última sílaba tônica” se prestava à fixação de uma letra na memória. De outra forma, seria muito difícil ver rappers recitando seus discursos quilométricos sem que fossem atores treinados. Mas havia um detalhe para o qual não tinha atentado:
o vocabulário das rimas também é importante. Isso porque minhas músicas também tinham rimas, em formatos ABCB tão ortodoxos quanto os de Teu Olhar, mas insistiam, por alguma razão, em fugir dos pares de palavras que o guitarrista considerava “mais bonitos para o ouvido”.
Anos após os fatos acima descritos, meu trabalho como jornalista da área de cultura permitiu constatar diversas vezes que de fato um certo vocabulário limitado tinha maior efetividade para a memorização e subseqüente sucesso de músicas populares3. Outra impressão recorrente era a de que haveria uma predisposição inata do público brasileiro para absorver melhor canções com arroubos românticos, reclamações de traição e relacionamentos interrompidos, de preferência numa intensidade que beira o inverossímil. Mas eu resumia toda essa idéia em apenas uma frase quando a expunha em conversas informais:
“O brasileiro é, acima de tudo, um cafona.”
Dito assim, sem rodeios, o argumento fica obviamente mais vulnerável. Meus debates com apreciadores de gêneros musicais que se enquadram no termo “cafona” tendiam a aquecer-se nesse ponto, quando a réplica mais comum era de que eu não podia afirmar uma coisa dessas sem conhecer os ditos gêneros a fundo. Minha tréplica seguia em direção às rimas, citando de memória os pares que considerava aparecerem com mais freqüência naquelas letras, e com eles em mãos dizia que os autores não podiam estar sendo sinceros se ligavam sempre as mesmas palavras umas às outras. Ao que me respondiam que eu não tinha como provar que uma rima é mais “manjada” que outra apenas por intuição, sem nenhum tipo de contagem. Em seguida alguém emendava o clássico “gosto não se discute”, e este era geralmente o momento em que eu me via obrigado a chamar o garçom e mudar de assunto.
Considero essa afirmação, “gosto não se discute”, de uma inadimplência mental constrangedora. Ela depõe contra o próprio jornalismo – se as opções estéticas não devem ser discutidas, melhor seria que os cadernos culturais viessem apenas com uma lista de todas as músicas, peças, filmes, livros e atrações disponíveis a seus leitores. E se há alguma coisa que posso dizer ter aprendido durante minha graduação na ECA é que o jornalismo não é mera listagem ou descrição de fatos: é contextualização, debate, pesquisa e exposição do contraditório.
No exercício da profissão, diversas vezes recebi emails de leitores espezinhando-me por ter criticado determinado show ou disco, apelando para o “gosto não se discute”. Invariavelmente eram fãs do artista/objeto resenhado, que sem perceber já estavam discutindo seu gosto comigo. Sempre respondi com um argumento que acredito muito, de que os fãs fazem uma confusão entre a discussão cultural e o julgamento de suas escolhas pessoais. Do mesmo modo, quando um cronista esportivo compara dados e afirma que o Corinthians foi o time que mais fez faltas violentas num campeonato, ele não está querendo dizer que seus torcedores são piores que os outros, está apenas trazendo mais argumentos para o debate.
Ou, tentando novamente resumir: “Gosto não se pune, mas se discute”.
Para além de toda discussão estético-emocional, outra singularidade me fazia considerar a rima importante: ela costuma ser basilar na composição da letra, muitas vezes ditando o tema do próximo verso ou de toda a estrofe em função de uma palavra que melhor “encaixe”.
Por exemplo: escreve-se um verso satisfatório que termina em “olhar” (termo A), mas não se tem ideia pronta para o seguinte. O método mais chucro de composição consiste em pensar numa outra palavra que rime bem com “olhar”, “mar” por exemplo (termo B), e construir os versos seguintes como uma ligação entre as duas pontas. O termo B, portanto, é muito mais uma solução prática que uma intencionalidade lírica, condicionada ao repertório de “palavras poéticas” do compositor (isso considerando que a escrita seja linear, o que é bastante razoável). Era o que acontecia com minha malfadada banda, pelo menos.
Por garantia, interpelei o cantor e compositor Rogério Flausino, do grupo mineiro Jota Quest, sobre seu método de composição de letras. Assíduo freqüentador da parada de sucessos na última década, ainda que algumas vezes por meio de canções que não utilizam rimas, Flausino corroborou a impressão:
Existem dois processos: o primeiro é o de escrever sem pensar em ser canção, e o segundo é quando já temos uma melodia pronta. Para o primeiro, escrevo uma frase ou uma palavra e saio escrevendo meio sem rumo, buscando ganchos, e a cada verso concluído parto para outro, também sem rumo, mas já com uma métrica deixada pelo verso anterior
O grifo é meu, para destacar que, apesar de Flausino afirmar que a métrica o guie mais do que as rimas, a composição verso-a-verso em busca de ganchos do próximo com o anterior é verossímil. Tem sua lógica, também: estranho seria se um compositor escrevesse todas as suas estrofes de uma vez, sem construí-las de um ponto de partida (a não ser em casos de fluxo de consciência, que não são nada comuns em música popular). O que pode mudar são os “ganchos” escolhidos – e uma das intenções deste trabalho é mostrar que as rimas são o grande “gancho” de nossos compositores populares, merecendo, portanto, uma análise em separado, já que podem sintetizar com eficiência sua lírica e retórica.
Com certa impetuosidade teórica, pode-se até afirmar que o estudo das palavras mais utilizadas em rimas seria uma forma de analisar o envolvimento de um compositor para com suas letras, se ele tem de fato intencionalidade criativa no que escreve ou se está apenas fazendo versos como pontes para pares de lugares-comuns. Afirmação arriscada, porém merecedora de checagem.
Outro estímulo apareceu-me durante a própria pesquisa. Um tanto surpreso, constatei que a porcentagem de músicas do gênero sertanejo romântico era muito relevante nas letras analisadas, a despeito do espaço quase nulo que a mídia dedica a esses artistas hoje (falo de mídia impressa, mas a televisão também diminuiu bastante seu espaço para o gênero).
A situação sugeriu diversos questionamentos interessantes, para os quais a conversa com o jornalista do Estado de S. Paulo Jotabê Medeiros foi particularmente útil: A que se deve essa distância entre as pautas e o gosto popular? Preconceito ou autopreservação? Teria o jornalismo considerado a batalha contra o “mau gosto” perdida, preferindo se isolar no que considera que seus leitores deveriam ouvir? Como argumentar que o público de jornais não ouve sertanejo, se uma rádio dedicada apenas ao gênero é líder de audiência em todos os segmentos e faixas etárias? Teria o rádio já se tornado um meio obsoleto de consumo de música?
A oportunidade de tratar com a cultura popular direto na fonte, como é o caso do pequeno fenômeno da Rádio Tupi em São Paulo, também mostrou-se atraente na feitura deste trabalho. Sem proselitismo nem receio de expor meus preconceitos, escrevo estas linhas ciente que até mesmo uma eventual irrelevância dos resultados obtidos não terá tornado o esforço injustificado.
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