Por Abílio Neto
As muitas homenagens que foram feitas à cantora Elis Regina pelos 30 anos da sua morte quase sempre são deturpadas por comentários deste tipo:
“UMA CHATA, MAL HUMORADA, DE POUCOS AMIGOS, DROGADA E SUICIDA. MAS UMA BELA VOZ. SEMPRE DETESTEI ELIS.” Naíra Jane Rodi em 20/01/2012
Quando eu leio tal tipo de coisa (e olhem que são centenas de comentários dessa espécie!) eu fico a me perguntar: será que eles conseguiram?
A palavra “eles” aí substitui a expressão “milicos que nos oprimiram e torturaram”, “vacas fardadas miseráveis”, “nazistas imundos”. Para mim qualquer uma delas é verdadeira!
Perguntem-me então por que eles tinham interesse em causar a morte moral da maior cantora do Brasil, trazendo maior sofrimento aos seus fãs do que a sua morte física?
Tudo começou em 1969 na Holanda. Numa entrevista à imprensa internacional, Elis Regina, de saco cheio com a falta de liberdade existente no nosso país, soltou sua conhecida língua grande e afirmou que o Brasil era uma terra governada por gorilas.
Quase dois anos depois, em 1971, Elis Regina foi chamada ao Centro de Relações Públicas do Exército para dar explicações sobre o fato. Ela disse que suas declarações foram deturpadas pelos jornalistas, mas os milicos ficaram de olho nela. Se bem que, a ficha de Elis junto aos órgãos de segurança não indicava nenhum sinal que causasse muita preocupação aos milicos porque ela não era militante da esquerda e nem era muito chegada a cantar música de protesto. O prontuário dela dizia o contrário: “É muito afeita a gravar músicas de protesto, inclusive ligadas ao movimento ‘Poder Negro’ norte-americano, apesar de não demonstrar ligação com o mesmo.” Em outro trecho escreveram: “Mostra-se retraída, não participante de grupos, mesmo em festas ou reuniões sociais”.
Ficou claro aí que eles tinham espiões por todos os lugares, mas quem afinal lhes passou essas informações sobre Elis que eram absolutamente verdadeiras em relação ao seu retraimento?
A verdade é que Elis vivia engasgada com aquele estado de coisas, mas para o seu bem, no Brasil, ela não abriu a boca. Lamentava, no entanto, profundamente o exílio real de Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros, assim como o exílio voluntário de Chico Buarque na Itália.
Diziam até que Elis não gostava muito de Gil e Caetano. Mentira absoluta! Elis era doida pelos baianos e quem do meio artístico não gostava dela? Quando houve aquela passeata ridícula contra a presença da guitarra na música brasileira, a Elis foi. Foi e arrastou seu amigo Gilberto Gil. Depois perguntaram a Gil como era que ele que foi um dos introdutores da guitarra na música de festivais com “Domingo no Parque” poderia ter participado de tal ato? Ele respondeu que foi por amor. Uma espécie de amor platônico por Elis. Ela era grande opositora do tropicalismo, mas depois em protesto contra o exílio de Caetano e Gil cantou num show com Miele, no Teatro da Praia, as músicas “Irene” e “Aquele Abraço”.
Aí surgiu o ano de 1972 e com ele o convite para que ela cantasse o Hino Nacional na cerimônia de abertura das Olimpíadas do Exército. Quem não queria Elis cantando o nosso hino? Fizeram um contrato, ela recebeu um cachê, mas depois só veio bronca para a gaúcha!
Foi chamada de traidora e imediatamente amaldiçoada no meio musical. Quase fizeram com ela o mesmo que aconteceu com Wilson Simonal. O cartunista Henfil a colocou no temido “Cemitério dos Mortos-Vivos” do jornal Pasquim.
Elis sempre primou para que a sua arte não fosse engajada politicamente, no que estava absolutamente certa, porém difícil foi conter a fúria de certos jornalistas formadores de opinião que passaram a insultar a cantora.
Em maio de 1973, o clímax contra Elis foi visto no “Festival Phono 73”, três noites em São Paulo com shows das grandes estrelas da gravadora Phillips, indo de Caetano Veloso a Oldair José com o seu hit “Pare de Tomar a Pílula”. Elis entrou tensa e com a expressão facial fechada. Foi recebida com extrema frieza. Entre alguns aplausos pouco entusiasmados, muitos assovios e o grito de uma voz raivosa que se ouviu pelos quatro cantos: “Vai cantar na Olimpíada do Exército!”, provocando ainda mais vaias do que aplausos à cantora. Foi quando uma voz vinda do palco pôs ordem na casa: “Respeitem a maior cantora do Brasil!”. Era o amigo Caetano Veloso.
Em 1976, num show feito para a TV Bandeirantes de São Paulo, Elis gravou de forma sensacional a metafórica canção de protesto de João Bosco e Aldir Blanc “Corsário”, uma das mais doloridas músicas daquele período noturno da vida brasileira. Esta música foi relançada num LP de 1984, após a sua morte, sem respeitarem os belíssimos arranjos originais.
Uma coisa que pouquíssimas pessoas sabem: Elis tornou-se amiga da esposa de um dos grandes nomes da cultura pernambucana, o escritor e teatrólogo Hermilo Borba Filho, através de Frei Betto, um esquerdista de carteirinha. Esta senhora que também é um ícone da cultura de Pernambuco, chama-se Lêda Alves, e foi a ela que Elis manifestou o desejo de conhecer Dom Hélder Câmara. Ficaram amigas e toda vez que Elis vinha a Recife para fazer show ia vê-la. Ela conheceu os filhos de Elis e viu Maria Rita de colo. Por coincidência, num dia que aqui houve um show de Elis, aconteceria um Via Sacra no bairro de São José seguida por Dom Hélder. Elis foi com a amiga e a cantora pediu uma audiência particular ao saudoso arcebispo, no que foi atendida. Depois, os fiéis que lotavam completamente a igreja foram agraciados com a linda voz de Elis cantando os versos da Via Sacra. Quem viu e ouviu não esqueceu jamais! Os militares, que acompanhavam todos os passos do Dom, com certeza ficaram sabendo de tudo.
Em 1979, em tom de desabafo, Elis Regina contou porque não tolerava o governo dos milicos:
“Eu vivia atônita porque eles sabiam tudo da minha vida, porra! Dia tal, lugar tal, tal hora, você conversou com fulano... Até os números dos cheques que eu mandava pra minha mãe em Porto Alegre, o número da conta...”
Depois disso, nesse mesmo ano de 1979, Elis gravou o “Hino da Anistia”, a música “O Bêbado E A Equilibrista”, numa magnífica interpretação da canção de João Bosco e Aldir Blanc, que é para mim a mais linda da década.
Há um gaiato historiador gaúcho que afirmou que essa canção é temporal e sua beleza morreu com o passar dos anos. Pois eu acho justamente o contrário, que esta música é atemporal e eterna, ainda mais na brilhante e inesquecível voz de Elis!
Chega então o fatídico 19/01/1982 quando o Brasil foi surpreendido perto da hora do almoço com a notícia do inesperado e trágico falecimento de Elis Regina em pleno apogeu da carreira, aos 36 anos de idade.
Uma semana depois, a revista Veja (sempre ela!) decretou a morte moral da estrela numa reportagem moralista e cheia de sensacionalismo. A revista defendeu veementemente o laudo apresentado por uma equipe de legistas entre os quais havia um com uma enorme carga de suspeição.
Após a separação com o músico César Camargo Mariano, Elis teve alguns romances fugazes. Depois começou um relacionamento sério com o advogado Samuel Mac Dowel com quem fazia planos de se casar novamente. Na noite anterior ao dia da morte discutiu asperamente com ele e foi para casa. Com a briga, Elis não conseguiu dormir e bebeu pelo restante da noite. No dia da morte, nova briga por telefone quando de repente a voz de Elis silenciou. O advogado ficou louco. Desesperado, foi até o apartamento da cantora e encontrou seu quarto fechado e ela sem atender aos chamados. Derrubou a porta e encontrou-a caída próxima ao telefone que estava fora do gancho. Ele ainda a colocou num táxi e levou-a ao Hospital das Clínicas. Tarde demais!
Fez parte da equipe que ficou responsável pelo laudo de Elis, o suspeitíssimo Harry Shibata, que entrou para a história do Brasil como notório colaborador do regime militar fascista, que fez uso da prática da tortura para obter confissões de supostos comunistas entre os anos de 1970/1977. Para justificar as mortes nos calabouços da ditadura, alguns médicos legistas forneciam falsos laudos em que jamais apontavam a tortura como causa da morte de inúmeras vítimas. Harry Shibata foi um desses legistas, tendo assinado o polêmico laudo da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, o qual atestava suicídio e não morte por tortura. Na época, Samuel Mac Dowell foi um dos advogados que pediram a condenação da União pela morte de Herzog, escancarando assim a farsa cometida por Shibata.
E foi logo este homem de reputação ilibada que assinou o laudo de Elis? Não, ele era o diretor do IML paulistano, mas a Veja disse que foram quatro médicos que concordaram com a causa da morte, sendo dois legistas, o diretor do IML e o próprio médico da família de Elis, que declarou o procedimento como “irrepreensível”.
Começou então a reação dos grandes amigos da cantora. Edu Lobo disse que o laudo era uma vingança de Shibata contra Samuel Mac Dowell em função do caso Herzog. Jair Rodrigues defendeu os filhos da cantora dizendo que eles eram menores e não poderiam ser hostilizados, apontando o dedo para aqueles que se drogavam no meio artístico e ninguém falava nada. Após dizer essas coisas, ele jamais conseguiu fazer o mesmo sucesso de antes porque o meio é cruel. Até o Henfil (que se tornara seu amigo) defendeu-a da onda moralista que visava queimar o nome de Elis no seio do povo.
Antes da divulgação do laudo, o diretor do IML, o polêmico legista Harry Shibata, telefonou para um amigo, o diretor do DOPS, Romeu Tuma, com uma dúvida: “Só me restam, a esta altura, duas hipóteses: ou foi barbitúrico ou então a ingestão de cocaína com álcool, por via oral, que provocaram a morte. Você sabe me dizer se alguém toma cocaína diluída em líquido?” Tuma não sabia, mas consultou delegados especializados em drogas e a resposta foi positiva. Um deles esclareceu que estava em moda a mistura de cocaína com uísque para potencializar o efeito da droga. O laudo seguiu à risca essa “recomendação”: ‘a quantidade de álcool etílico encontrada em nível sangüíneo revelou estar a vítima sob estado de embriaguez e a presença de cocaína caracterizando o estado tóxico, que em somatória podem responder pelo evento letal’.
Vejam que a conclusão desse laudo deixa muito a desejar. Mas diante disso, o que disseram algumas pessoas próximas de Elis? Primeiro, a palavra de Regina Echeverria, amiga da cantora e escritora da sua biografia sob o título “O Furacão Elis”:
“Eu não entendo isso... Vocês ainda têm alguma dúvida a respeito? O laudo foi contestado, mas é correto. Basta verificarmos todas as publicações da época. Vamos parar de besteira. Isso não é uma polêmica. É um fato. Ponto final. É apenas um dado da vida dela. Existem outros milhões. Eu não inventei isso. Mas não foi porque a Elis morreu de overdose que ela deixou de ser a pessoa que era. Ela não é uma Janis Joplin, um Jimi Hendrix. A Elis sempre foi contra as drogas. A minha tese é de que ela morreu da própria ignorância a respeito do assunto, do próprio preconceito dela em relação ao assunto. Ela escondia, não deixava ninguém saber. O problema é de quem não aceita a verdade. Não meu.”
O outro depoimento importante foi do jornalista, escritor e crítico musical Nelson Motta, amigo e depois amante de Elis, após a sua separação de Ronaldo Bôscoli:
“Elis percorreu as ruas da cidade pela última vez, ovacionada pelas multidões que encheram as janelas e calçadas de todo o trajeto até o Cemitério do Morumbi. Nunca um artista brasileiro recebeu igual consagração popular. Acompanhei o cortejo no carro da amiga jornalista Regina Echeverria, devastado de tristeza e perplexidade. Trinta e seis anos!!! Entre Krishna e Lacan, entre Cristo e Buda, entre cabeça e coração, procuro um sentido e um consolo para aquela perda, imagino o avesso de um milagre, do mesmo milagre que fez de uma garota baixinha e pobre da periferia de Porto Alegre uma das maiores cantoras do mundo. Vivi sua morte como um anti-milagre. Para mim era novidade até que Elis estivesse cheirando pesado nos últimos meses, não fazia o seu estilo. Elis nunca foi drogada nem dependente de nada. Bebia um pouco de vez em quando, fumava um baseado aqui e ali, mas nunca fez nada compulsivamente. Estava entrando na cocaína numa hora em que muita gente já estava começando a sair. Pior: sempre preocupada com a voz, a garganta, seus maiores bens, estava evitando inalar cocaína, preferindo misturá-la com uísque: dessa forma, a droga vai para o estômago e demora mais a entrar na corrente sanguínea, tornando muito difícil controlar as quantidades. Foi o que matou Elis”.
Eu ainda não me conformo com tudo isso. Ficava olhando horas e horas a fotografia de Elis com seus três filhos (Maria Rita no colo) e admirando a sua felicidade, seu sorriso lindo e espontâneo. Não, não poderia ser verdade esse laudo! Qual o último motivo que tenho para nele não acreditar? Como incansável trabalhadora, Elis Regina acreditava na força e no poder dos trabalhadores organizados em sindicatos e até em partido político para defesa de seus direitos. Assim sendo, juntamente com grandes artistas, trabalhadores e intelectuais de escol, foi uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores, o PT, sendo a ele filiada em 1981. Quando faleceu, o regime ditatorial estava nos estertores, mas aquele laudo poderia ser muito bem uma vingança porque desde 1979 que ela se tornou a musa da anistia, contrariando inúmeros saudosistas do moribundo sistema.
Elis sempre foi do bem e uma pessoa ímpar de grandeza humana. Deixo aqui um pouco de Elis por ela mesma, 30 anos após sua morte:
“Muita gente se pergunta quem sou eu: leviana, alegre, extrovertida, realizada, triste ou só? Pouquíssimos são os que me conhecem. No fundo, Elis Regina é uma menina-velha, conseqüência única e exclusivamente da vida e do mundo em que vive. A pessoa vai se transformando a cada dia. Não me preocupo com a vida de ninguém, não me interesso se estão andando com a perna para cima ou para baixo, o que me importa nas pessoas não é o que elas fazem, mas o que elas dão de si. Numa palavra: eu sou eu mesma e é difícil descrever-me. Gosto de calor humano, preciso de afeto. Elis Regina Carvalho Costa tem vinte anos e é completamente diferente de Elis Regina, a cantora, mulher de quarenta anos bem vividos. Quem conhece uma, não conhece a outra, pois uma não vive em função da outra.”
Muito boa a matéria sobre a cantora.
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