No último mês de agosto completaram-se 70 anos sem um dos nomes que certamente teria um futuro promissor no mundo do samba, se não tivesse falecido prematuramente aos 19 anos: Vassourinha.
Por Alexandre Petillo
Por Alexandre Petillo
Vassourinha é flamenguista, mas seu samba é paulistano. Tem aquela melancolia sutil, aquela tristeza impregnada mesmo nas canções mais alegres. Manja? Esse texto vai ser grande, meio professoral, sugiro que respire fundo.
Estamos nos anos 30 e o panorama é o seguinte: o presidente, Washington Luiz, paulista, está a beira de deixar o cargo e, como acontecia desde 1894, tinha que indicar um sucessor mineiro (a tal política do “café com leite”, em que os governantes alternavam-se entre paulistas e mineiros). Ignorando tal acordo, Washington Luiz indica outro paulista para o cargo, Júlio Prestes. A resposta é agressiva, resultando num fulminante processo revolucionário.
São Paulo está crescendo. A população da capital paulista é de 600 mil habitantes. Um parque industrial firma-se nos bairros mais antigos, principalmente na Moóca, Brás e Luz. Culturalmente, teatros de boa estrutura são inaugurados, salas de cinemas se proliferam. Na música paulista, o palco de outra revolução se organiza. 1931, é inaugurada a Rádio Record.
A Record dedicava-se a programação popular, combatendo a rival Educadora, que não abria mão do erudito ou, como eles mesmos rotulavam, cheio de “programas de música fina”. Já a Record apostava numa programação variada, com vários programas de curta duração dedicada aos diversos gêneros – um modo revolucionário de transmissão para a época. O povo agradeceu.
Com a revolução de 32, o Brasil sintonizava em busca de notícias de São Paulo. Encontraram a Record. Junto com as novidades do front, os ouvintes se depararam com um grupo de novos artistas, novas vozes. Outra revolução se instalou: essas novas vozes fez São Paulo começar a arranhar no título de “capital cultural do Brasil”, que até então pertencia ao Rio de Janeiro. Na linha de frente do escrete paulistano vinham Nelson Gonçalves, Isaura Garcia, Januário de Oliveira, Agripina, Alvarenga e Ranchinho, entre outros. Mansinho, vinha ele, Mário Ramos de Oliveira, ou melhor, o nosso herói Vassourinha.
Sua história daria um filme de sucesso caso nossos cineastas fossem espertos. Vassourinha foi descoberto por um redator de textos comerciais da Record, que dizia conhecer, da pensão onde morava, “um garotinho com muito ritmo, cantor e tocador de pandeiro”. Vassourinha, que então atendia pelo nome artístico de Juracy, tinha apenas 12 anos de idade, e começou na rádio trabalhando como contínuo de dia e cantor de noite. Aos 14, começou a fazer sucesso e a dedicar cada vez mais tempo à carreira musical. Foi quando a rádio achou melhor trocar o pseudônimo do guri.
Vassoura era um negrão metido a engraçado que atuava como motorista de taxi no Largo Paissandu. A alcunha de “vassoura” ele ganhou por ser sempre o único disponível na madrugada para levar para casa os últimos freqüentadores do “Ponto Chic” (que, coincidentemente, foi o primeiro lugar onde este escriba almoçou quando se mudou para São Paulo), que na época era o principal reduto dos paulistanos abonados.
Por algum motivo, inventaram que Mário era filho de Vassoura e, claro, virou Vassourinha. Nessa época, Vassourinha iniciou uma frutífera e extremamente bem sucedida parceria com Isaura Garcia. Vassourinha despontava bravamente para o sucesso e só tinha 15 anos. Carmen Miranda, maior produto de exportação brasileiro da época, quando vinha a São Paulo, fazia questão de contar com Vassourinha nos seus espetáculos.
Vassourinha passou a ser conhecido como o sucessor de Luís Barbosa, o inventor do “samba de breque”, morto aos 28 anos. Ambos tinham o mesmo tom de voz, abusavam dos timbres agudos, das inflexões maliciosas. Apesar do bairrismo contra os artistas paulistanos, Vassourinha já fazia tanto barulho que acabou na capa da revista “Carioca”, principal publicação cultural da época.
Quanto mais crescia o sucesso musical de Vassourinha, mais aumentava sua aura misteriosa. Um mito se construía. Mesmo os amigos mais próximos nada sabiam sobre o passado do cantor ou alguma notícias de seus familiares. Vassourinha evitava falar sobre sua família. Aos 17 anos, em 1940, Vassourinha ganhou a oportunidade de registrar seu talento em disco.
Gravou um compacto pela Columbia, com o sucesso “Seu Libório” (de autoria de Luís Barbosa) em um lado, e “Juracy”, um choro, do outro. O compacto é um sucesso fulminante. Aproveitando sobras da gravação, a Columbia coloca no mercado outro compacto, com “Emília” e “Ela Vai a Feira”, que também estouram nas paradas de sucesso.
Como o sucesso era enorme, Vassourinha foi chamado pela gravadora ao Rio de Janeiro para gravar mais quatro canções, com destaque para “Chik, Chik, Bum”, esta, exclusivamente para o Carnaval de 1942. No entanto, célebre, Vassourinha acabou seduzido pelo Rio, onde começou a freqüentar o jet set artístico com afinco.
Mas como nossa história é trágica e não cômica, no auge do sucesso, Vassourinha começa a sentir estranhas dores pelo corpo. Quando o amigo Ciro de Souza o levou para o hospital, os médicos não sabiam mais o que fazer – muito menos do que se tratava. Tratava-se, segundo consta, de uma doença muito rara, num mix muito louco de tuberculose, reumatismo e tudo mais que se pudesse pensar em termos de moléstias. Precisou retornar às pressas para São Paulo, sob a seguinte recomendação médica: “ele tem que fazer a viagem sentado ou de pé, se ele deitar não levanta mais”. Vassourinha entrou no trem para a capital paulista quase morto. Aos 19 anos.
Em São Paulo, nada puderam fazer e Vassourinha passou os últimos dias vegetando, esperando a morte. Isaura Garcia foi visitar o cantor e encontrou com uma senhora chamada Dona Tereza, supostamente mãe de Vassourinha. Dona Tereza disse para a cantora que o que fez mal para Vassourinha foram as seguidas viagens de trem para o Rio. “Ele deve ter tomado algum golpe forte de ar”, disse Tereza. Isaura Garcia dizia, ainda, que um médico que estava presente, ‘apertava os ossos do rosto de Vassourinha e os ossos viravam pó”.
Ninguém soube ao certo do que morreu Vassourinha no dia 31 de julho de 1942, aos 19 anos de idade. Partiu para o anonimato, não recebeu nem um pingo de reconhecimento que tiveram artistas do mesmo quilate, como Cartola e Nelson Cavaquinho.
Vassourinha é flamenguista, mas seu samba é paulistano. Tem aquela melancolia sutil, aquela tristeza impregnada mesmo nas canções mais alegres. Manja?
Mesmo nas canções mais iluminadas, como a marchinha “Chik, Chik, Bum”, a voz aguda do cantor parece carregar o peso do mundo nos ombros. Passeando pelo choro, samba e marchinha, Vassourinha era o baticum paulistano encarnado. Ouvir as gravações do cantor é como ser transportado para algum boteco do Brás dos anos 30. Não é doutô nem malandro, adora a noite, mas sonhava com uma “mulher econômica, leal e boa dona de casa”, como cantava em “Emília”. Ouvir as canções de Vassourinha é um passaporte para uma era romântica, do Carnaval moleque, da diversão relaxada, da alegria espontânea, orgânica. De uma era ainda não corrompida pelo capital, que manda até mesmo na cultura mais enraizada.
Vassourinha foi um dos primeiros heróis trágicos da música brasileira. Com contornos ainda mais dramáticos porque sua obra permaneceu quase esquecida por décadas. Milagrosamente, todas as canções que gravou – 12, no total – foram lançadas em um CD, pela Warner, no ano passado – na verdade, já tinha saído em forma de uma coletânea em vinil, em 1976, mas passou batida. São clássicos da música brasileira numa interpretação única, num sincopado perfeito, pérolas como “Seu Libório”, “Juracy”, “Apaga a Vela”, “Tá Gostoso”, “Amanhã Tem Baile”... Se o Brasil fosse um país sério, certamente teríamos o nosso Robert Johnson.
Existe um curta experimental sobre a trajetória fulminante do cantor. Chama-se A voz e o vazio: a vez de Vassourinha, e é dirigido por Carlos Adriano. Dá para assistir no site Porta Curtas (www.portacurtas.com.br). Uma história cinematográfica.
Uma história trágica. Um mega sucesso. Vassourinha foi o Rei do Brasil, mas nem teve tempo de aproveitar a glória. Um verdadeiro meteoro. Morreu não se sabe de quê. Não que Isaura Garcia não tenha avisado. Ela avisou: “encontrei com ele uma vez, no Café Nice, abatido, reclamando de dores estranhas. Adverti-o de que poderia ser reumatismo, causado por muito chope gelado. Ele tomava muito chope gelado e ficava na rua até altas horas!”.
É, malandro, se cuida aí.
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