Por Abílio Neto
“Caboclo humilde, roceiro
Disposto, trabalhador
No remexer da sanfona
Escuta este cantador
Que no baião fala ao mundo
Teu grandioso valor
E do caboclo que vive
Com a enxada na mão
Trabalhando o dia inteiro
Com a maior diversão
Sem invejar a ninguém
Satisfeito a trabalhar
Cada vez mais animado
Esse teu suor pingado
Grandeza e honra te dar
Na tua humilde palhoça
Só se ver felicidade
E quando chegas da roça
Te sentas mesmo a vontade
Pra comer teu prato feito
Na mesa ou mesmo no chão
A filharada em rebanho
O teu prazer é tamanho
De quem possui um milhão
Aqui nesta vida humana
Ninguém é melhor que tu
Escuta esta homenagem
De um cabra do Pajeú
E outro do Rio Brígida
Dos carrascais do Exu
(Zé Marcolino em “Caboclo Nordestino”)
Quando se fala em Luiz Gonzaga, costuma-se logo lembrar a “Santíssima Trindade do Baião”, formada por ele e pelos parceiros mais notórios, Humberto Teixeira e Zé Dantas. Eu já presenciei debates acalorados sobre este tema, mas acho esse tipo de discussão uma perda de tempo. Humberto Teixeira foi grande, Zé Dantas foi imenso, porém houve um, o mais humilde dos parceiros, que para mim foi o maior de todos eles. Seu nome? José Marcolino Alves, conhecido no universo da poesia e da música simplesmente como Zé Marcolino.
Assim como do trabalho do barro existem inúmeros artistas de talento no Alto do Moura, em Caruaru, moldando aqueles bonecos famosos, não há nenhum outro artesão que se compare com o saudoso Mestre Vitalino. É o caso de Luiz Gonzaga que teve cinco cúmplices fundamentais no alicerce da sua grande obra: Miguel Lima, Humberto Teixeira, Zé Dantas, Onildo Almeida e Zé Marcolino. O último deles para mim é o primeiro.
Humberto Teixeira era advogado e um dândi da sociedade carioca. Zé Dantas era filho do coronel Zeca, homem de posses, e formou-se em medicina. Onildo Almeida já era dono de emissora de rádio quando conheceu Luiz Gonzaga. Somente Miguel Lima, um músico e trabalhador em estrada de ferro se pode comparar a Zé Marcolino, um homem da lida na roça, daquele tipo que criava um boi para depois vendê-lo na feira de Sumé.
Na minha leitura da obra de Luiz Gonzaga, foi através do poeta Zé Marcolino que ele atingiu o ápice da sua carreira como o maior intérprete da música do Nordeste. A poesia de Marcolino para mim era indissociável da sua música. Assim sendo, sua arte era tão indivisível que não poderia ser obra de dois. E me parece que foi assim mesmo!
Humberto Teixeira e Zé Dantas não tiveram a capacidade de descrever o sertão assim como fez Zé Marcolino. Ele era um profundo retratista da alma sertaneja. Nenhum outro poeta que faz ou fez versos musicados chegou aos seus pés nesse sentido. E tão ligado era o seu grande versejar às veredas e caminhos dos sertões, que ele não chegou a ser bem compreendido nos grandes centros urbanos como foram Humberto Teixeira e Zé Dantas.
É por isso que hoje em dia nas grandes cidades quando se fala em Zé Marcolino só se associa a ele a música “Numa Sala de Reboco”. Belezas raras como “Caboclo Nordestino”, “Pássaro Carão”, “Cantiga de Vem-vem”, “Serrote Agudo” e “Cacimba Nova”, infelizmente não são mais lembradas. Aí é que reside a grande injustiça contra o poeta da Paraíba: os jovens dos dias atuais mal sabem quem ele foi, quando a música dele deveria ser até matéria obrigatória da grade escolar.
Luiz Gonzaga gravou 17 músicas dele ao todo, mas as que foram gravadas na década de oitenta não possuem a mesma imensidão poética daquelas 14 registradas na década de sessenta. Dirão alguns: mas são apenas 14 músicas e elas imortalizaram tanto assim esse homem? Eu respondo: Patativa do Assaré tem apenas uma música gravada por Luiz Gonzaga, porém analisem o peso do registro dessa página sonora dele no conjunto da obra do Rei do Baião!
Eu quando vim do interior para o Recife a fim de fazer um curso superior, na república de estudantes que eu morava, no bairro da Boa Vista, havia um cabra de Buíque que no fim da década de sessenta já dizia que Luiz Gonzaga havia roubado Zé Marcolino e Zé Dantas. E não era uma coisa que se falava à boca pequena não, isso se comentava às vezes em altos brados tanto em salas de reboco quanto em salões de mosaico, apenas para distinguir o campo das cidades. Luiz Gonzaga durante toda sua vida artística levou, infelizmente, essa pecha de se aproveitar dos seus parceiros musicais.
Quem estudou com mais profundidade a vida de Luiz Gonzaga, sabe que, quando ele encontrava um compositor iluminado, a primeira coisa que ele deixava transparecer era querer juntar seu nome ao daquela pessoa como forma de fazer crescer a sua arte, de torná-lo ainda maior do que ele já era. Foi assim com Humberto e Zé Dantas. Humberto Teixeira, numa célebre entrevista a Nirez, disse que várias músicas eram dele (música e letra) enquanto outras tinham sido feitas também só por Luiz. Num depoimento a Dominique Dreyfus, sobre Zé Dantas, Luiz Gonzaga declarou: “Eu não gosto de fazer uma música do início ao fim e as poucas que eu fiz (com letra) não se deram muito bem. Eu faço o ‘monstro’ e entrego ao poeta. Eu sempre fui um sanfoneiro. Com Zé Dantas, às vezes era parceria mesmo, outras vezes ele fazia letra e música e eu fazia os arranjos. Eu sou mais um ‘sanfonizador’”.
Essa declaração dele, trazida para o presente, faz os seus inimigos (que são poucos) babarem de alegria porque é motivo para o deixarem mais raso do que o chão.
Mas se foi assim, por que haveria de ser diferente com Zé Marcolino? O que eu não suporto ouvir, é dizerem que ele fazia isso por interesse financeiro com o fim de enriquecer. Não adianta colocar a tarja preta de “comprositor” em Luiz Gonzaga que alguns insistem em fazer porque não cola, assim como não “pega” tentar mostrá-lo como interesseiro e materialista, pois ele nunca se apegou muito a dinheiro. Quem afirmar isso conhece muito pouco da pessoa de “Seu Luiz”. Além disso, ele era um senhor compositor, sim. As 55 músicas que são dele sem parceiros, comprovam soberbamente que ele produziu harmonias e até letras lindíssimas! Não fizeram tanto sucesso como as letras dos outros e por esse motivo ele dizia que não era compositor. Para que o público entenda com mais profundidade quem foi Luiz Gonzaga é realmente necessária a presença dos seus exegetas.
Mas voltando ao caso de Zé Marcolino, o tempo que ele passou convivendo com Luiz Gonzaga no Rio de Janeiro e fazendo turnês, era suficiente para que produzisse alguma música em parceria real com ele. As músicas que eu juraria que havia ali o dedo de Luiz Gonzaga, eram as melodias de “Caboclo Nordestino” e “Cantiga de Vem-vem”, mas para meu desamparo as duas trazem somente nos discos a assinatura do grande mestre de Sumé. “Matuto Aperreado” é outra que pressinto a mão de Luiz Gonzaga, mas somente o fato de que o registro da música foi em parceria não é suficiente para muitos.
Então, a tese que todo mundo aceita hoje é que as parcerias de Luiz Gonzaga com Zé Marcolino foram, exclusivamente, no sentido de dar às suas músicas uma vestimenta digna do autor que os mais lindos versos musicados lhe entregou. E nisso aí acredito até que a família do ilustre compositor paraibano não tenha nenhuma queixa. Os discos ainda estão aí para demonstrar com robustez que Luiz Gonzaga deu o máximo de si para enriquecer mais ainda aquelas músicas, e essa arte dele as sociedades de direitos autorais não regulamentam ou prescrevem. É só prestar atenção nessas 14 obras. Ele (quer queiram, quer não), está também presente nelas com toda a sua grandeza!
Ouvi no decorrer da minha vida que a música “Santo Fingido”, o poeta Zé Marcolino havia feito para Luiz Gonzaga. É puro folclore! Há até um cordel de um poeta famoso, Zé Medeiros, que cuida desse assunto, no entanto, uma entrevista de Dimas Marcolino, sobrinho-irmão do poeta, dirime essas dúvidas. Os versos foram dedicados a uma mulher. É inegável que o notável poeta gostasse muito de duas coisas: cachacinha e mulher, até porque ninguém vive mesmo sem as duas!
Certa vez numa das raras entrevistas que fizeram com Zé Marcolino, perguntaram-lhe o seguinte: “Como é a sua linha de composição? MARCOLINO - Eu faço música quando necessito. O que me levou a compor 'Numa Sala de Reboco', por exemplo, foi o seguinte: no sítio, no dia em que a casa é rebocada, sempre há uma festa. O pai da moça, por mais severo que ele seja, mesmo não permitindo o rapaz pegar na mão de sua filha, não fará objeção que eles dancem o forró, permitindo, assim, uma aproximação maior.”
No seu livro autobiográfico lançado pela editora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, há dois capítulos dedicados a Luiz Gonzaga. Nem uma linha sequer para falar mal dele. Isso diz muito da pessoa de Zé Marcolino. Sentia-se um homem grato ao invés de roubado. E a gratidão é uma das maiores virtudes humanas!
Quando o sanfoneiro de Exu levou o poeta Marcolino para o Rio de Janeiro, ele integrou-se perfeitamente a todas as atividades artísticas de Luiz Gonzaga, participando inclusive da gravação do famoso LP “O Véio Macho”, de 1962, e atuando como ritmista e corista nos shows que o Rei do Baião fazia. Levou um ano e tanto nessa pisada, depois numa turnê pelo Nordeste, sentiu saudades da família e abandonou o grupo viajante de “Seu Luiz”.
Um grande contador de “causos”, Zé Marcolino conta em seu livro que um fiscal da Ordem dos Músicos queria interromper a gravação do disco “O Véio Macho” para que todos os músicos, inclusive Luiz, pudessem se inscrever e obter os devidos registros profissionais. Disse o poeta que “Luiz, como sertanejo e temperamental, partiu para pegar o homem que com um jeito bem amável falou: entenda, Seu Luiz, eu sou um admirador seu. Provo isto com um pé de laranja plantado no quintal da minha casa que leva o seu nome!”
Outra de Luiz que ele contava: certa vez num show no sertão, quando o sanfoneiro cantava “sertão das mulé séria e dos homi trabaiador”, um bêbado se ergueu da plateia e gritou: “Eita, Luiz, que faz muito tempo que tu andasse no sertão”.
Aqui estão, por ordem alfabética, as 17 músicas gravadas por Luiz Gonzaga que levam o nome do poeta Zé Marcolino:
• A Dança de Nicodemos (c/ Luiz Gonzaga) – 1962 (Ô Véio Macho)
• Boca de Caieira (c/ Zé Mocó) – 1986 (Forró de Cabo a Rabo)
• Caboclo Nordestino – 1963 (Festa do Milho)
• Cacimba Nova (c/ Luiz Gonzaga) – 1964 (A Triste Partida) e em 1981 só com o nome de Zé Marcolino (A Festa)
• Cantiga do Vem-vem – 1964 (A Triste Partida)
• Eu e Meu Fole – 1986 (Forró de Cabo a Rabo)
• Fogo Sem Fuzil (c/Luiz Gonzaga) – 1965 (Quadrilhas e Marchinhas Juninas)
• Marimbondo (c/ Luiz Gonzaga) – 1964 (A Triste Partida)
• Matuto Aperreado (c/ Luiz Gonzaga) – 1962 (Ô Véio Macho)
• No Piancó (c/ Luiz Gonzaga) – 1962 (Ô Véio Macho)
• Numa Sala de Reboco (c/ Luiz Gonzaga) – 1964 (A Triste Partida)
• Pássaro Carão (c/ Luiz Gonzaga) – 1962 (Ô Véio Macho)
• Pedido a São João – 1963 (Festa do Milho)
• Projeto Asa Branca (c/ Luiz Gonzaga) – 1983 (70 anos de Sanfona e Simpatia)
• Quero Chá (c/Luiz Gonzaga) – 1965 (Quadrilhas e Marchinhas Juninas)
• Serrote Agudo (c/ Luiz Gonzaga) – 1962 (Ô Véio Macho)
• Sertão de Aço (c/ Luiz Gonzaga) – 1962 (Ô Véio Macho)
José Marcolino Alves nasceu no Sítio Várzea que hoje integra o município de Sumé, na Paraíba, no dia 28 de junho de 1930 e faleceu em 20 de setembro de 1987, nas imediações de Afogados da Ingazeira, quando o automóvel em que viajava, dirigido pelo seu filho Ubirajara, fez uma manobra brusca para desviar de uma vaca que atravessava a estrada e capotou, ferindo de morte o notável poeta de “Saudade Imprudente”.
Por ocasião da 1ª Missa do Poeta, realizada em Serra Talhada, em 20/09/1988, Luiz Gonzaga, já muito doente, que mesmo sentado não podia mais com o peso da sanfona, se fez presente e depois cantou “Cantinga de Vem-vem” e “Cacimba Nova” numa homenagem que durou três dias. É o que esse vídeo tem a mostrar. Ele vale pelas imagens porque o áudio é muito ruim. Luiz cantou na sexta-feira. Os sanfoneiros eram Mauro (já falecido) e seu sobrinho Joquinha que toca em frente hoje sua carreira artística. Presença no palco de Alcimar Monteiro (bastante jovem) que tem uma pequena participação.
Passados 25 anos da morte do poeta Marcolino, os poetas e artistas do sertão falam da sua morte no presente não mais com tanta tristeza, mas até com boa dose de humor, conforme a composição de Ivanildo Vilanova e Ton Oliveira, interpretada por Ton Oliveira e Flávio José, conforme faz prova esse vídeo que mostro clicando aqui. E o mote glosado foi: “Uma vaca matou Zé Marcolino/ E eu não dava Zé numa boiada”. Uma maravilha essa música!
Zé Marcolino fez baiões como ninguém e é com um desses que vamos homenageá-lo: “Matuto Aperreado”. É do tempo em que ele viveu merecidamente na corte do Rei Luiz Gonzaga como figura exponencial do baião.
Viva o poeta Zé Marcolino, hoje e sempre! Que o seu legado jamais seja esquecido pelos amantes da boa música oriunda do sertão do Nordeste do Brasil, de onde ele nos derramou sua incomparável poesia musicada, e poesia como a dele não se deve nunca deixar cair no chão.
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