Tem sido explorada pela mídia, crítica musical, blogueiros e alguns autores de livros, a questão das parcerias de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira, Zé Dantas e Zé Marcolino. No ano do centenário do Rei do Baião querem diminuí-lo para torná-lo assim uma espécie de explorador dos seus parceiros. Dizem isso sutilmente com palavras cautelosamente medidas. Essas pessoas se baseiam exclusivamente em depoimentos pessoais de familiares desses compositores que dizem sempre a mesma coisa: que eles faziam todas as músicas sem parceiros e Luiz Gonzaga ao gravá-las empurrava seu nome nos discos.
Quem se dispuser a pesquisar e não somente dar ouvido a familiares ressentidos, terá um ótimo material para escrever um livro. Eu não me proponho a tal até porque já passei da idade para isso, mas posso dar algumas dicas para quem tiver essa vontade por onde a pessoa pode iniciar. Começo por um depoimento muito importante de Humberto Teixeira dado ao pesquisador Nirez, do Ceará. Trago, em seguida, o que escreveu Zé Dantas, do próprio punho, no encarte de um LP (coletânea) do fim da década de 50.
Zé Dantas mudou-se para o Rio de Janeiro em 1950 e somente veio a casar com dona Iolanda em 1954. Ele era freqüentador assíduo de uma fazenda que Luiz Gonzaga tinha pras bandas de Miguel Pereira. Lá, se deitava numa rede, comia as comidas preparadas pelas irmãs de Luiz Gonzaga, ao mesmo tempo em que fazia suas pesquisas. É preciso não esquecer que ele era um folclorista. Luiz Gonzaga o conheceu contando “causos” e cantando loas do folclore e não suas composições. Algumas músicas que Gonzaga gravou no início da década de 50 ele as fez sozinho, mas estender esse raciocínio mesquinho para todas as músicas gravadas por Luiz em parceria com ele é contrariar o mínimo bom senso.
Luiz Gonzaga participou ativamente do processo de criação de tudo o que gravou em parceria porque com seu ouvido privilegiado, seu reconhecido talento de músico intuitivo e sua enorme capacidade de modificar algo que já estava aparentemente pronto, ele interferia em tudo, tanto na questão melódica quanto nas palavras que as letras das músicas traziam. Tudo era debatido até se chegar a um senso comum. Quem tiver alguma dúvida sobre isso, pergunte ao compositor João Silva como era compor em parceria com Luiz Gonzaga. Ele que não tinha formação musical, foi parceiro até de maestros como Hervé Cordovil e Guio de Morais!
O poeta Zé Marcolino era outro de quem se diz que tinha algumas músicas prontas quando o conheceu, mas omitem dizer que Luiz Gonzaga o levou para o Rio de Janeiro e o colocou para trabalhar com ele. Foram quase dois anos em que Marcolino esteve afastado da família a quem o poeta não deu nem notícias. Pode-se dizer que todas essas músicas compostas no Rio de Janeiro foram criações dele sem a interferência de Seu Luiz? Ninguém assistiu ao processo criativo delas para opinar com segurança.
Observem também que há várias músicas gravadas por Luiz Gonzaga que trazem unicamente o nome de Zé Dantas, Humberto Teixeira ou Zé Marcolino como compositor. Por que isso? Eles não eram obrigados a ceder parceria a Luiz?
Vejam o depoimento de Humberto Teixeira logo abaixo. Ele é de uma extrema lucidez. Depois desse artigo, pretendo silenciar sobre este assunto, mas continuo lendo as injustiças do tipo: “Zé Dantas é o compositor pernambucano com mais clássicos na MPB”. Cadê o nome de Luiz Gonzaga?
Humberto Teixeira é entrevistado por Nirez em 1977
“Nirez - Como foi esse contato com Luiz Gonzaga? Humberto Teixeira - O Luiz Gonzaga, tal como eu, como Lauro, estava fazendo os primeiros sucessos dele com a “Mula Preta”, com “Xamego”, com as músicas que ele fazia com o Miguel Lima. Mas a vontade do Luiz era lançar a música do Norte, como ele chamava. Ele não dizia no Nordeste. Ele procurou o Lauro Maia e o Lauro disse: “Olha rapaz. Esse negócio de campanha, isso me apavora. Eu sou um homem indisciplinado, eu não guardo coisas nem compromisso de um dia pro outro. Acho mais interessante você procurar meu cunhado Humberto Teixeira. Ele também é compositor. Ele é mais organizado”. Um belo dia, estou no meu escritório de advogado lá no Rio, quando me procurou o Luiz Gonzaga. Ficamos, naquela tarde, de quatro e meia até quase meia-noite, nesse primeiro encontro. Naquele dia nós chegamos a duas conclusões muito interessantes. Uma delas é que a música ou o ritmo que iria servir de lastro para nossa campanha de lançamento da música do Norte, a música nordestina no Sul, seria o baião. Nós achamos que era o que tinha características mais fáceis, mais uniformes. Naquele mesmo dia nós fizemos os primeiros versos, discutimos as primeiras idéias em torno da “Asa Branca”, que só dois anos depois foi gravada. No dia em que gravamos, com o conjunto de Canhoto, ele disse assim: “Mas, puxa, vocês depois de um negócio desses, de sucessos, vêm cantar moda de igreja, de cego, aqui? Que troço horrível!”. Aí então, eles com um pires na mão, saíam pedindo, brincando, uma esmola pro Luiz e pra mim dentro do estúdio. Mal sabiam eles que nós estávamos gravando ali uma das páginas mais maravilhosas da música brasileira. Três dias depois do primeiro encontro com Luiz Gonzaga já fizemos, de pedra e cal, o primeiro baião que se gravou em todo o mundo: “Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/ E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção...” Eu me sentia como se estivesse com bitola, aquela coisa toda pinicadazinha, cortada, sujeita àquele ritmo quadrado. Logo depois descobrimos que podíamos deixar o ritmo solto e extravasar nosso lirismo. Depois veio “Juazeiro”, veio “Xanduzinha”. Era o início de centenas de músicas que fizemos juntos. Muita gente hoje pergunta como é que eu me deixei ofuscar, me ocultar tão inteiramente assim à sombra do prestígio fabuloso que o Luiz granjeou, sobretudo no que diz respeito à autoria. Principalmente depois do processo de mitificação de Luiz Gonzaga, da redescoberta que a onda baiana fez em torno dele, muita gente diz que eu sou o letrista das músicas de Gonzaga. Não existe isso. Muitas delas são minhas integralmente. Letra, música e tudo. Como outras são do Luiz. O baião, se tivesse sido feito só por mim, continuaria sendo apenas um negócio inédito, ao passo que com o Luiz ele se tornou esse marco extraordinário dentro da música popular brasileira marcando uma década de sucessos fantásticos. De 47 a 57, quer queiram, quer não, os documentos, a história dos suplementos, das fábricas, as gravadoras, o rendimento autoral das sociedades, tudo era feito em torno do baião. O Luiz, por exemplo, tem uma mágoa que você não pode avaliar em torno disso. Os aprendizes de historiadores da música popular brasileira pulam de 47 pra Bossa Nova. Eles falam da música brasileira, o choro, a parte do choro, a parte daquilo, a parte da Bossa Nova, a parte da Tropicália e não sei o que mais. E o baião não existe? Por que querer botar uma esponja em 10 anos de sucesso? O Luiz foi um pioneiro em vários aspectos. Veja você que quando os cantores, os compositores se apresentavam de smoking, de terninho e gravatinha, o Luiz já vinha de talabarte, chapéu de couro e tudo. Pra mim o Luiz Gonzaga foi o primeiro hippie da música popular brasileira.”
Texto escrito por Zé Dantas na contracapa do disco “Luiz Gonzaga canta seus sucessos com Zé Dantas”
“Por simpática iniciativa da RCA Victor, o presente Long Play contém exclusivamente músicas minhas em co-parceria com Luiz Gonzaga. Este preito de homenagem tornou-se para nós tanto mais significativo quando o intérprete escolhido foi o próprio Luiz Gonzaga, cantor de inimitável autenticidade folclórica, já com seu nome reservado à posteridade pelo registro sério de tratadistas nacionais e estrangeiros, e a nós ligado por profundos laços afetivos e artísticos.
Em 1947, conhecemos Luiz Gonzaga em Recife, na residência de um amigo comum, onde havia uma festa íntima. Luiz puxando o fole da sanfona, com sua voz nasalada de tenor caboclo, cantava toadas sertanejas que nos faziam evocar com emoção o longínquo Riacho do Navio e nos levavam às margens do Pajeú das Flores. O autor destas “mal traçadas” contava “causos” e cantava loas aprendidas no chão batido dos forrós à luz mortiça dos candeeiros. A identidade de vocação artística nos dispensou apresentação, a surpreendente coincidência de motivação nos tornou amigos e a música nos fez parceiros.
Desde então, baseados no sincretismo musical das melodias ibérica, ameríndia e gregoriana, que deu origem à música sertaneja, apoiados no ritmo da viola e firmados no pitoresco linguajar caboclo, temos divulgado os costumes, a arte e a vida social do homem nas caatingas do nordeste brasileiro.
Hoje, já com uma centena de músicas publicadas, a RCA Victor gentilmente pediu-nos que escolhêssemos doze dos nossos maiores sucessos para a presente seleção, dando-me ainda a liberdade de comentá-los. Assim, com o nosso agradecimento à RCA Victor, passaremos em desfile as músicas contidas neste LP.”
Depois de ler esses dois textos que falam por si sós, apenas uma pergunta se torna pertinente: Será que Humberto Teixeira e Zé Dantas foram obrigados a declarar isso aí? Sinceramente, não vou perder meu tempo com discussão estéril!
Abílio Neto, sempre oportuno e necessário reiterar essa questão, que parece abastecer determinados setores atrasados da mídia - crítica cultural - que prefere não ver a contribuição indiscutível e fundamental de Lua à Música Popular Brasileira.!!!!
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