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segunda-feira, 2 de maio de 2011

ECAD, GLOBO, COMPOSITORES: DE QUEM É A MÚSICA?

Por Pedro Alexandre Sanches


Um belo dia, um músico com cara de Dom Quixote decidiu se insurgir contra sua própria família, a dos compositores brasileiros reunidos sob o guarda-chuva do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad. Com outros sete autores especializados em trilhas sonoras para televisão, Tim Rescala abriu um processo contra a instituição, que centraliza o recolhimento de direitos autorais, da qual ele é um dos 260 mil associados.

A família contra-atacou. A assembléia que compõe o Ecad, integrada em tese por compositores (mas na prática também por representantes de gravadoras e editoras de música), indignou-se com um artigo publicado no jornal O Globo, no qual Rescala classificava a instituição-mãe como “caixa-preta”. Deliberou-se que o Ecad moveria uma ação por difamação contra o filhote rebelado.

Havia ainda outro personagem, oculto e de atuação controversa na trama. “O que motiva Tim Rescala é uma coisa chamada Rede Globo”, afirma um membro ativo da assembléia do Ecad, o editor José Antonio Perdomo. “Por trás dele, está o interesse da Globo de asfixiar o Ecad.” De fato, outra disputa, bem mais feroz, se desenrola na Justiça, entre a maior rede de tevê do País e a instituição mais poderosa da atual música brasileira (em 2007, o Ecad declarou ter arrecadado 302 milhões de reais, mais que todas as grandes gravadoras reunidas). Para ter autorização de usar suas músicas, a Globo (bem como as demais emissoras, quase todas “rebeldes” ao Ecad) tem de pagar uma taxa mensal ao escritório.

O Ecad reivindica na Justiça 2,5% de todo o faturamento da Globo (o que equivaleria, hoje, a cerca de 16 milhões de reais mensais, 192 milhões por ano) em pagamento pelas músicas executadas na programação. A rede contesta esse valor e deposita, em juízo, 4,1 milhões de reais mensais.

A Globo nega qualquer vínculo entre a disputa maior e a menor, movida pelos compositores Rescala, Sérgio Saraceni, Mu Carvalho, Guilherme Dias Gomes, Armando Sousa, Márcio Pereira, Ricardo Ottoboni e Rodolpho Rebuzzi. “A TV Globo não tem nada a ver com a ação dos produtores musicais. Este é um assunto entre eles e o Ecad”, manifesta-se a Central Globo de Comunicação (CGC).

Rescala, além de ter usado O Globo como veículo de protesto, trabalha para a tevê do grupo desde 1989. Prestador de serviços terceirizado à Globo, é autor de temas incidentais usados em programas como Zorra Total, A Escolinha do Professor Raimundo e Hoje É Dia de Maria. “Não agimos motivados pela Globo, apenas temos um inimigo em comum”, ele afirma. E diz que o levante sobre o Ecad é resultado de uma tomada de consciência: “A nossa ignorância como classe é responsável por isso. Eu era relapso. A maioria dos músicos é assim, e vão sendo engambelados. Não sabem nem o que é o Ecad. Fui assim, não sou mais”.

Complexas são as circunstâncias que fazem um grupo de músicos encarar como “inimiga” a entidade que existe supostamente para protegê-los. Na ação, eles reivindicam do Ecad um ressarcimento de cerca de 140 milhões de reais. “Como oito titulares de direitos autorais querem receber 140 milhões de atrasados, se a Globo não pagou isso para a gente?”, indaga a superintendente do Ecad, Glória Braga. “Arrecadamos ano passado 302 milhões de reais, para quase 100 mil autores, e eles querem 140 milhões para oito, o que é isso? Se perderem, vão pedir 140 milhões à Globo? Não vão.” Rescala tem argumentos para legitimar as queixas de seu grupo. De 2001 para cá, os autores de músicas incidentais, ou de background, para produtos audiovisuais viram o Ecad reduzir seus rendimentos sucessivamente para um terço, um sexto e 1/12 do valor original. “Para eles, a música preexistente vale 12 vezes mais que a música feita especificamente para uma novela, por exemplo. Deveria ser o contrário”, queixa-se Rescala.

Glória Braga retruca de modo indireto: “Pergunte para os autores das músicas de abertura de novela o que acham disso”. Não diz mais, mas dá a entender que a “redistribuição” é demanda dos próprios autores, os colegas mais famosos (e poderosos) dos fazedores de trilhas. “Quando o processamos, muitos titulares nos mandaram cartas dizendo ‘é isso mesmo’.”

Entre os temas de abertura de novelas recentes contam-se composições (quase sempre antigas) de Dorival Caymmi, Tom Jobim, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Luiz Gonzaga Jr., Fábio Jr. e Leonardo. “Não se quis levar a coisa para o lado da luta de classes”, afirma Glória.

Mas que a luta existe, existe. É o que afirma Roberto Ferigato, um músico de Jundiaí, autor de trilhas de esporte radical e fornecedor de fundos musicais para o SBT e a Record. Com outros 24 autores, ele move ação semelhante contra o Ecad, a partir de São Paulo, e descreve uma situação hipotética: “Eles acham que a gente estava ganhando mais que os compositores em evidência. Não querem que conste no boletim do Ecad que ‘a música mais tocada do ano é de Roberto Ferigato’. Quem é Roberto Ferigato? Uma parte da classe autoral que está pendurada mamando na teta não quer isso”.

Ele justifica o processo contra o Ecad: “Não aceitamos a redução de valores, feita sem nossa autorização. Foi desleal. Não publicam as pautas das assembléias. Não tem como a gente participar, não é um processo democrático. Processaram o Tim para intimidar a gente”. A assembléia do Ecad, hoje, é integrada por dez sociedades arrecadadoras de direitos autorais, das quais só seis têm poder de voto. O peso de cada voto é proporcional ao montante recolhido por sociedade. Atualmente, as decisões no Ecad são lideradas pela União Brasileira de Compositores (UBC) e pela Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), com cerca de 38% do recolhimento total para cada uma.

À UBC estão filiadas editoras poderosas e autores como Gilberto Gil, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Milton Nascimento, Rita Lee, Djavan, Leonardo, Marisa Monte, Racionais MC’s e Ana Carolina. A Abramus é tida como a sociedade das gravadoras, e abriga nomes como Caetano Veloso, Tom Zé, Zé Ramalho, Fábio Jr., Marina Lima, Titãs, Nando Reis, Chitãozinho & Xororó, Seu Jorge e Pitty. E Tim Rescala.

Segundo o compositor, a redução dos valores devidos a autores de trilhas começou quando vários deles ingressaram na Abramus. Sua entrada, diz, colocaria essa sociedade na liderança da assembléia, o que teria provocado a reação da UBC e a mudança das regras. Para ele, José Antonio Perdomo é “o Eurico Miranda do Ecad”. Ex-presidente da editora multinacional EMI Publishing, Perdomo tem sido reeleito sucessivamente na UBC desde 1989.

“Nosso plano era ficar quatro anos e cair fora, mas as coisas não são assim. Eu sempre fui eleito pelos compositores, com mais de 80% dos votos”, defende-se. “A gente troca a diretoria para não dizerem que é sempre a mesma.”

Mesmo sob um verniz de maior civilidade e modernidade, o Ecad faz lembrar, sob esses aspectos, a cartorial Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), controlada por Wilson Sandoli desde 1964, e onde membros rebelados costumam ser ameaçados de processos ou expulsão. Rescala acusa o escritório de inicialmente ter se utilizado da controversa Lei de Imprensa para processá-lo, o que o departamento jurídico do Ecad nega.

Glória Braga sustenta que o processo não se deve à represália. “A assembléia entendeu que o artigo dele era difamatório, calunioso. Decidimos procurar remédio no Judiciário. Isso é a democracia”, diz. É ela, de resto elegante e gentil, quem profere uma frase como a seguinte: “Ato de ditadura seria contratar alguém para dar uma surra no Tim Rescala”.

Nas sombras da trama, permanece a Rede Globo, contrária aos 2,5% exigidos pelo Ecad. “Tem de pagar 2,5%, sim”, retruca Perdomo. “O preço de seus anúncios quem estipula é ela. Eu dou o preço, se não quiser pagar, então não usa as músicas. A Globo alega que o Ecad está querendo ser sócio dela. Mas, se tirar a música, acabou a Rede Globo.”

Nas sombras vive também a elite dos autores brasileiros, de quem raramente se ouvem queixas contra o Ecad. Perdomo dá a entender de que lado eles estão: “Como o artista pode ir contra uma TV Globo? Eles podem nos dar força, mas no nível da diretoria, não em público. Se um artista médio defender o Ecad, acabou”.

É desse contexto que emerge, das entranhas da Rede Globo, um quixote como Tim Rescala.

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