Por Marcelo Xavier
Músicos e cantores se posicionam na frente do captador (um cone parecido com o do gramofone, porém maior, para captar todo o som ambiente). Como a gravação era registrada toda ao vivo, sem edição, num acetato em cera, nada poderia sair errado. A função do diretor, por sua vez, era evidenciar as vozes na frente do cone e colocar instrumentos de sopro no fundo do estúdio, para não se sobreporem aos vocais. Cantores na frente, orquestra atrás, o diretor dá o sinal para a técnica, que acena para um atento Pixinginha, que levanta os braços e dá a introdução que o autor havia concebido para “O Teu Cabelo Não Nega”, cuja fanfarra foi criada pelo próprio maestro. Castro Barbosa, com sua voz característica, junto com o coro, entoa, pela primeira vez:
O teu cabeloNão nega, mulata,Porque és mulata na corMas como a corNão pega, mulata,Mulata eu quero o teu amor...
Assim nasceu o maior sucesso carnavalesco de todos os tempos, e uma das dez gravações mais importantes de todos os tempos, na história da música popular brasileira. O disco seria lançado no suplemento de janeiro de 1932 da RCA, e se tornaria desde então tema característico das festas de Momo em terras brasileiras. Porém, esta seria apenas uma gota dentro do oceano musical daquele que seria imortalizado pelo inventor da marchinha carnavalesca, o carioca Lamartine Babo (1904-1963).
Contudo, Lamartine levou anos para fazer sucesso da noite para o dia. Nasceu em um ambiente musical, mas teve que sustentar a família na juventude, após a morte do pai, em 1917. Foi office-boy da Light e da Companhia Internacional de Seguros. Sua facilidade em fazer versos e seu desregrado bom-humor lhe abriram as portas da revista Dom Quixote, onde colaborava com poemas e sátiras aos costumes da época. Em 1924, largou o trabalho e descobriu o teatro musicado, que então vivia o seu auge, com paródias e quadros carnavalescos. Em um ano, já era um assíduo colaborador das chamadas revistas musicais.
Mas não seria o teatro de revista o seu caminho. Eduardo Souto, proprietário da Casa Carlos Gomes, financiava batalhas de confetes que antecediam o Carnaval, divulgando assim suas músicas. Entusiasmado, Lamartine quis compor também. A partir de então, criou temas para os ranchos carnavalescos da época, entre eles o Ameno Resedá (exato, aquele mesmo, da música do Ernesto Nazaré). Em 1927, encontramos Lamartine no bloco do Careca, que era tricampeão dos carnavais de 1920, 22 e 24. Ali, ele criou seu primeiro êxito carnavalesco, Os Calças-Largas, que seria a coqueluche do Carnaval de 1928.
As coisas só mudariam na década de 30. Agora o cinema era falado e a música migrou para o espaço das emissoras de rádio, que se expandiam de forma vertiginosa. Não era mais preciso divulgar blocos para lançar música, como os pregoeiros do começo do século, ou vender partitura de porta em porta. A coisa toda nascia com a divulgação de discos. Mais do que isso, havia também a revolução do rádio, que era capaz de criar conceitos e mudar opiniões. O sucesso nascia nos estúdios, e ganhava as ruas numa progressão fulminante. Aqui, cantores e compositores se tornavam notórios da noite para o dia, de uma forma nunca vista até então. A música carnavalesca mantinha um padrão, e compositores que estavam habituados a lançar canções nessa época do ano, desde os tempos do “Abre Alas”, de Chiquinha Gonzaga, agora descobriam o imenso filão.
Antes de “O Teu Cabelo Não Nega”, Lamartine Babo já havia ganhado um concurso da revista O Cruzeiro com a marcha “Bota o Feijão No Fogo”. Em 1931, ganhou outro certame, desta vez, promovido pela Casa Edson (a antiga EMI), com “Bonde Errado” e fez sucesso com “Lua Cor-de-Prata”, “Minha Cabrocha” e “O Barbado foi-se”. A partir de 1932, Lamartine orientava o Carnaval com a citada “O Teu Cabelo Não Nega”, “Só Dando Com Uma Pedra Nela” e AEIOU, em parceria com Noel Rosa:
A-E-I-O-UDabliúDabliúNa Cartilha da JujuJuju
Mas a verdade é que o compositor carioca teve que repartir a taça com “O Teu Cabelo Não Nega”. Na verdade, se tratava de uma composição original dos irmãos Valença. Eles eram pernambucanos,e haviam enviado a canção para a Victor, com o nome de “Mulata”. Lamartine apenas adaptou a cantiga regional, deu-lhe a introdução, mudou-lhe o ritmo, e não teve responsabilidade quando o selo dizia “motivo do norte, adaptado por L. Babo”. Os compositores ganharam a questão na Justiça e, desde então, aparecem com seus nomes mencionados ao lado de Lamartine...
Com o tempo, Lamartine Babo se transformava em motivo de expectativa. Quando o Carnaval ia chegar, todos se entreolhavam em bares, cafés, gravadoras e rádios: que será que ele vai apresentar este ano? As respostas eram várias, mudavam no título e no tema, mas eram sempre os mesmos com relação ao acolhimento do público. Por exemplo, em 1933, os foliões cantavam e gritavam:
Linda MorenaMorenaMorena que me faz penarA lua cheiaQue tanto brilhaNão brilha tanto como o teu olhar
Ou então:
A tua vidaÉ um segredoÉ um romanceE tem enredo!
Lamartine tinha já os seus intérpretes característicos, como a jovem Carmen Miranda, que quanto mais desafinava, mais engraçada deixava a música, e Mário Reis, que ia na contramão dos cantores de dó maior e fazia arrelia com as letras picarescas do compositor. Muitas vezes, dividia o microfone com o próprio Lamartine Babo que, assim como Noel Rosa, tinha um fiapo de voz mas era capaz de compensar com uma interpretação hilária e bastante sua, tanto em gravações próprias ou em companhia de Mário ou Carmen, como em “Moleque Indigesto”:
Esse molequeÉ bom rapazTem um defeitoCome demaisComo, come, não deixa restoOh, que moleque indigesto!
No mesmo ano, Lamartine aparecia com “Aí, Hein?”
Pensas que eu não sei?Toma cuidadoPois um diaEu fiz o mesmoE me estrepei!
Em parceria com Paulo Valença, ele fazia todo mundo rir com “Boa Bola”
Queria bordar teu nomeNa própria gola da camisolaAo som da TraviataNuma vitrolaQue boa bola!
Em 1934, fazendo troça com a ópera “Paliacci”, de Leoncavallo, fez a marchinha “Ride Palhaço”, na dupla Mário Reis-Francisco Alves:
Ride, palhaço, lá, lá, lá, lá, lá, lá!Ah, ah, ah, ah!Eu souO teu pierrôColombinaColombinaReparte esse amorMetade pra mimMetade pro teu arlequim!
Com Ari Barroso, fez “Grau Dez”
A vitória de ser tua, tua, tuaMoreninha prosaLá no Céu a própria Lua, Lua, LuaNão é mais formosaRainha da cabeça aos pésMorena, eu te dou grau dez!
Em contraste, Lamartine quis mostrar o lado melancólico e efêmero do Carnaval, em “Rasguei a Minha Fantasia”, interpretada por Mário Reis:
Rasguei a minha fantasiaO meu palhaçoCheio de laço e balãoRasguei a minha fantasiaGuardei os guizos no meu coração
“TUDO CHEIRA A CARNAVAL ” — Em 1935, a coisa não estava muito boa. Sem promoção e sem dinheiro, Lamartine conseguiu um polpudo financiamento de uma fábrica de sabonetes. A forma de fazer propaganda sem ferir as regras da arte foi vender o produto de forma subliminar. Assim nasceu “Senhorita Carnaval”, cuja fanfarra de abertura se tornaria característica nos bailes, a partir de então. O refrão era todo feito em superlativos, e cantada, com todo o acinte, pelo próprio Lamartine, para chorar de rir:
Carioquíssima!Animadíssima!Renovadíssima!Nacionalíssima!Amabilíssima!Valiosíssima!Assanhadíssima!Luxuosíssima! Há!Oh, que dama divinal,Ela se chama senhorita Carnaval!
O sabonete se chamava Carnaval, e cada letra inicial dos superlativos, se somada, uma a uma, dá exatamente “Carnaval”. Talvez tenha sido a primeira propaganda subliminar na história...
Em 1936, Lamartine aparecia com “Marchinha do Grande Galo”
CocococococoricóCocococococoricóO galoTem saudadesDa galinha Carijó
Prolífico, ele fazia paródia com o nonsense e o lúdico da poesia modernista em “AB Surdo”. Na marchinha, completamente sem sentido, o compositor dizia:
Nasci na praia do Zumbi 86Vai fazer um mêsVai fazer um mêsQue a minha tia me emprestou Cinco mil RéisPra comprar pastéisPra comprar pastéisÉ futurismo, menina, É futurismoIsso não é marcha,Nem aqui, nem lá na China
Noutra feita, Lamartine fez uma versão bem sua para o conhecido tango Yira Yira, de Enrique Discépolo, que passou a se chamar “A Família Orangotango”. O refrão ficou mais ou menos assim:
Um rapagão de traquejo,Queijo! Queijo!
Lamartine Babo ia além, a cada Carnaval. As marchinhas se acumulavam, muitas delas reapareciam com mais intensidade a cada festa de Momo, outras já nasciam clássicas, e caiam na boca do povo. Muitas restariam na memória, outras, porém, são lembradas por poucos.“Vou cantar a noite inteira/Rancheira/ Vou dançar pela fonética/Estética” (“Babo...seira”); “Só danço valsa nos salões/Tango com bandoneões/Yo me rompo todo assim/ Arlequim, arlequim (De...cadência de pierrô”); “Teus braços/Meu bem/Com tanto sinal/Fazem lembrar a Central/ E lá na Central/Tem teu namorado, menina/ Fugiu com a Leopoldina”.
No Carnaval de 1934, nasceu da impagável pena de Lamartine a sua versão da “História do Brasil” e que, como sempre, era uma janela aberta a prospecções filosóficas sobre o pensamento antropológico do brasileiro sem-culotes que, como dizia aquela epígrafe de um conhecido jornal carioca, questionava que não queria saber quem descobriu o Brasil mas, sim, “quem põe água no leite”. Nesse sentido, e mais tropicalista do que nunca, “Lalá” entendia que Cabral descobriu o Brasil dois meses “depois do Carnaval”. Nada mais sugestivo. De qualquer maneira, tudo começa depois da festa. Inclusive, segundo consta, essa marchinha também fez muito galego sambar lá na terra de Camões:
Quem foi queinventou o Brasil?Foi seu CabralFoi seu Cabral!No dia 21 de abrilDois meses depoisDo Carnaval!DepoisCeci amou PeriPeri beijou CeciAo somAo som do Guarani...
Claro que, durante todo esse tempo, Lamartine não seria apenas um compositor carnavalesco: fez sucesso com pérolas como a lírica “Serra da Boa Esperança” (que foi grande sucesso cna voz de Francisco Alves), a inesquecível “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda”, a junina “Chegou a Hora da Fogueira” e a antológica “No Rancho Fundo”, em parceria com Ari Barroso. Mesmo com a qualidade das suas composições de “meio da ano”, Lamartine ficou conhecido pelo seu lado folião. Também se tornou conhecido por ser o autor de quase todos os hinos de times do futebol carioca, entre eles, o do Flamengo, do Fluminense e do seu time do coração, o América.
RESSURREIÇÃO — O seu ostracismo foi inversamente proporcional à profissionalização do Carnaval. Lamartine não podia competir com a crescente indústria da folia, que era capaz de eleger sucessos em detrimento da saudável competição dos tempos da Era do Rádio. Agora, por mais perfeitas que fossem as canções, elas não estavam livres do trabalho de caitituagem, que sempre impediu a divulgação de autores não comprometidos com a indústria carnavalesca ou acostumados com os fins e os meios dos meios de comunicação. Definitivamente afastado das festas de Momo, Lamartine virou membro da União Brasileira dos Compositores (UBC). Voltou em 1959, com uma criação especialmente composta para um rancho carnavalesco. Nostálgico, viria às cargas dois anos depois, com “Ressurreição dos Velhos Carnavais”, que se caracteriza pelo tocante saudosismo de seu poeta: “vem arlequim, que a tua sina/ Era adorar a Colombina/Dos carnavais que não voltam mais”.
Em 1963, o produtor musical Carlos Machado montava um espetáculo no Copacabana Palace com as marchinhas de Lamartine Babo. O compositor chegou a assistir aos ensaios. Estava frustrado porque sua última canção, “Seja lá o que Deus Quiser”, foi abafado pelo jabá das escolas de samba. Agora ele tinha um show completamente seu, em sua homenagem. Ao assistir aos primeiros ensaios, Lamartine se comoveu profundamente. Reviver daquela forma seus velhos sucessos foi demais para ele. Lamartine recém havia se recuperado de um enfarte, em fevereiro daquele ano. Faleceu dia 16 de junho daquele mesmo ano. Um mês depois, as portas do “Copa” exibiam cartazes anunciando o grande show “O Teu Cabelo Não Nega”, que se tornou numa justa homenagem (póstuma) ao homem que inventou a marchinha.
E, neste Carnaval, foliões e orquestras certamente irão relembrar a alegria da música de Lamartine Babo.
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