Por Jeocaz Lee-Meddi
Gal, de 1969 é, talvez, o mais ousado disco da carreira de Gal Costa. Em nenhum outro momento a cantora repetiu o que ouvimos neste álbum. Gal, mais conhecido como o álbum psicodélico, a começar pela capa, com um desenho típico dos vôos sem céu do fim dos anos 1960. Na contra capa aparece uma imagem desfocada da cantora, com o seu cabelo “juba de leão”, já anunciando a sua fúria. O momento é de raiva. Seus amigos e companheiros da Tropicália, Gilberto Gil e Caetano Veloso, após a prisão em dezembro de 1968, seriam libertados na quarta-feira de cinzas de 1969, sendo escoltados até Salvador, de onde partiriam em Julho para o exílio em Londres. Gal Costa ficava sozinha com a sua raiva. Da menina bossa nova de “Domingo” (álbum de lançamento da sua carreira, em 1967) não resta nada. Suas interpretações e posturas, até então intimistas e contidas, tornam-se mais agressivas. A cantora junta-se a Jards Macalé e à guitarra de Lanny Gordin, o resultado é este álbum único, com apenas nove faixas, mas que não houve outro registro igual na música brasileira.
Do Rock Psicodélico ao Grito de Protesto
O álbum começa com “Cinema Olympia“ (Caetano Veloso), onde, sem maiores rodeios, ela já nos avisa:
“Não quero mais
Essas tardes mornais, normais”
Na década de 60 todas as grandes cidades tinham o seu cinema Olympia (Belém, São Paulo, Rio, Salvador – talvez o cinema que Caetano se refere, seja o Olympia da Baixa dos Sapateiros, famoso por suas matinés para a burguesia local, que nos anos 1960 passava filmes de westerns dos anos 40 de Tom Mix e Buck Jones). Caetano Veloso deixou esta música em demo, com o seu exílio nunca a gravou, sendo lançado recentemente um álbum com a versão demo e com inéditas do autor numa caixa comemorativa. Ao cantar “Cinema Olympia”, a voz jovial da cantora não nos indica a leoa enfurecida que está por vir.
”Tuareg” (Jorge Ben) parece nos levar para oásis e desertos orientais, mas o ano é de 1969, a guerrilha urbana está no auge, assaltos a bancos, o seqüestro do embaixador norte-americano pela resistência guerrilheira, assassínio nas ruas de São Paulo de Carlos Marighela. Os versos de Jorge Ben não soam tão ingênuos, mas provocativos:
“Pois ele é guerreiro
Ele é bandoleiro
Ele é justiceiro
Ele é mandingueiro
Ele é um tuareg”
Seria um tuareg dos desertos? Ou um guerrilheiro das ruas das cidades brasileiras? A música fez parte da trilha do filme "O Diamante Cor-de-Rosa", de Roberto Farias, 1969, com Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
É a partir de “Cultura e Civilização” (Gilberto Gil) que começam os gritos, as mixagens sujas, o canto rascante da leoa enfurecida.
“Contanto que me deixem meu cabelo belo
Meu cabelo belo
Como a juba de um leão”
“Com Medo, Com Pedro” e “Objeto Sim, Objeto Não” (aqui se registra o ápice da viagem psicodélica) são as outras duas canções de Gilberto Gil que entram no álbum. Gilberto Gil deixara as canções em demo no dia que embarcou para o exílio, para que Gal Costa pudesse saber como cantá-las.
O ano de 1969 também é o ano do festival de Woodstock, que reuniria em um sítio mais de 300 mil hippies e entraria para a história. A influência de Janis Joplin no início da carreira de Gal Costa é literalmente gritante nas faixas “The Empty Boat” (Caetano Veloso) e “Pulsars e Quasars” (Capinam – Jards Macalé), esta última encerra o álbum e mostra a insatisfação da cantora com os acontecimentos políticos, que a transformam na última representante da Tropicália, a sua fúria é refletida nas distorções da guitarra ácida de Lanny Gordin, nos versos que chamam e clamam pelos amigos exilados:
“O inverso, um ser mutante universal
Meu ingresso para as touradas do mal
Dos sóis, Cá e Gil me mandem notícias logo
A sós, pulsos abertos, eu volto
Sem voz, ye ye, sem voz”
Há tempo para aquela que seria por muitos anos, a música mais lembrada de Jorge Ben, “País Tropical “, numa participação especial de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Resta a pergunta, esta participação foi feita em estúdio? Provavelmente não, pois desde que saíram da prisão Gilberto Gil e Caetano Veloso foram escoltados até Salvador, até o embarque para o exílio não pisaram mais no Rio de Janeiro e nem em São Paulo. Apesar de ser uma das mais belas e contundentes interpretações de “País Tropical”, a canção explodiu não com Gal Costa e seus convidados, mas através de Wilson Simonal, sendo esta versão durante anos conhecida apenas pelo público da cantora, recuperada bem mais tarde pela MPB.
O destaque do álbum vai para “Meu Nome é Gal” (Roberto Carlos – Erasmo Carlos), a dupla maior da Jovem Guarda fazia para Wanderléa músicas românticas, ingênuas. Para Gal era diferente, refletia uma mulher contestando a sua época, mostrando o amor livre de então, não importando cor, crença ou tradição. A canção mostra uma Gal Costa libertária, com seus ruídos vocais, os agudos aqui indomáveis diante da guitarra, mudando as oitavas. A cantora encerrava o lado A do disco com esta canção, rasgando a música na metade e se apresentando:
"Meu nome é Gal, tenho 24 anos
Nasci na Barra Avenida, Bahia
Todo dia eu sonho alguém pra mim
Acredito em Deus, gosto de baile, cinema
Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo,
Macalé, Paulinho da Viola, Lanny,
Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat,
Waly, Dircinho, Nando,
E o pessoal da pesada
E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar
Não precisa sobrenome
Pois é o amor que faz o homem"
Ao fechar o lado A do LP, ninguém mais se esqueceria daquela que gritava “Meu Nome é Gal”.
Na época Gal Costa refletia os dois lados da sociedade brasileira: a mulher que era reverenciada por uma juventude massacrada pela ditadura, remanescentes dos ventos vindos do Maio de 1968, de Paris, que trazia c
abelos e roupas exóticas, que ousava confrontar os costumes e abraçar as novas tendências do mundo, que era convidada para fazer o show de moda Stravaganza, ao lado de Raul Cortez, na Fenite, e a mulher odiada pelos conservadores, que falavam para as suas filhinhas bem-comportadas: “Se não pentear os cabelos vai virar uma juba que nem os da Gal Costa”.
“Gal”, o psicodélico, é tropicalista? É. É rock? É. É o Woodstock tupiniquim? É. É hippie, jopliniano? É tudo isto e mais um pouco. É Gal. O que faz o álbum “Gal”, o psicodélico, diferente do primeiro álbum solo da cantora? O romantismo. Nele não há tempo para as músicas românticas. É tempo de sobreviver, de gritar, contestar, portanto não há espaço para as músicas românticas. É a grande diferença dos dois álbuns de 1969 de Gal Costa.
”Gal” 1969 é a intervenção mais radical da carreira de Gal Costa. Mostra uma cantora ímpar e sem limitações de carreira. No distanciamento do tempo, é um álbum amado ou odiado, sem meios termos. De uma atualidade incondicional. Virou o álbum mais cult da carreira da cantora. Depois deste álbum nada mais fez sentido na Tropicália. Encerrou-se aqui!
Release do Disco – Por Caetano Veloso
Você precisa saber que Gal Costa é um dos acontecimentos mais importantes da música brasileira de hoje. Na Bahia havia a Graça e uma sala profunda, enraizada, recôncava de cachoeiras mortas, uma voz guardada apenas ali, absoluta. Gal nunca teve medo. Eu não tenho medo de saber que é difícil para o artista assumir sua própria grandeza. Ela ouviu João Gilberto mais e melhor do que ninguém. Não acredito que alguém ainda tenha medo de guitarras elétricas. WOW! Acho que o nosso trabalho não estabelece um universo para Gal que o nosso experimentalismo necessariamente desorganizado... SNIF, SNIF, tudo é perigoso, "Why Each time Superman appears at that window, Clark Kent is not at his desk?", Janis Joplin, Jackson do Pandeiro, Cool, Paulinho da Viola, a legião dos Sub- heróis. Mas Gal EXPLODIU sozinha, muito acima de tudo. João Gilberto havia se comovido com a Graça, descobrindo sua voz guardada. Ninguém pode deplorar nosso Vale-Tudo: quando Gal canta, ele vale-nada. Gal EXPLODIU sozinha. Só vale Gal.
Eu sei que é assim
Caetano Veloso
Ficha Técnica:
Gal
Philips
1969
Direção da produção: Manuel Barenbein
Arranjos e direção musical: Rogério Duprat
Técnicos: João Kibelkstis e Stélio Carlini
Estúdio: Scatena - SP
Fotos da contracapa: Freitas
Capa: Dicinho
Músicos Participantes:
Baixo, guitarra solo e guitarra base: Lanny Gordin
Bateria: Eduardo Portes de Souza e Diógenes Burani Filho
Violão: Jards Macalé
Baixo: Rodolpho Grani Júnior
Gal (1969)
Faixas:
01 - Cinema Olympia (Caetano Veloso)
02 - Tuareg (Jorge Ben)
03 - Cultura e civilização (Gilberto Gil)
04 - País tropical (Jorge Ben) Participação: Caetano Veloso / Gilberto Gil
05 - Meu nome é Gal (Erasmo Carlos - Roberto Carlos)
06 - Com medo, com Pedro (Gilberto Gil)
07 - The empty boat (Caetano Veloso)
08 - Objeto sim, objeto não (Gilberto Gil)
09 - Pulsars e quasars (Capinan - Jards Macalé)
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