Por André Nigri
No dia 7 de setembro de 1971, o jornal carioca O Pasquim publicou um dos cartuns mais cruéis da história da imprensa brasileira. No desenho, vê-se a mão de um homem com o dedo indicador esticado, apontando para alguém. No texto que acompanha o cartum, lê-se: "Como todos sabem, o dedo de Simonal é hoje muito mais famoso do que sua voz. A propósito: Simonal foi um cantor brasileiro que fez muito sucesso no país ali pelo final da década de 60". O desenho tem uma pitada de racismo, e o texto, um teor tragicamente profético. Racismo: a mão é negra. Profecia: de 1971 até sua morte, no ano 2000, o cantor Wilson Simonal viveu uma situação ímpar no show business brasileiro. Pelo "crime", jamais provado, de que teria sido informante da ditadura (daí o dedo do delator desenhado pelo Pasquim), teve o pior castigo que um artista pode sofrer: o ostracismo. As gravadoras, a televisão e as casas de show lhe fecharam as portas. Com a carreira violentamente amputada, Simonal mergulhou na depressão e no alcoolismo. Isso depois de ele ter se consagrado como o maior artista pop de seu tempo, rivalizando com Roberto Carlos. Nos 29 anos em que o cantor sobreviveu à tragédia pessoal e artística, até sua obra foi esquecida. "Eu não existo na história da música popular brasileira", costumava dizer à segunda mulher, Sandra Cerqueira. O nome Simonal deixou de evocar suas músicas. A menção a ele em rodas de conversa trazia sempre à tona uma pergunta infalível: afinal, ele delatou mesmo?
A melhor resposta já dada a essa questão está no documentário Simonal — Ninguém Sabe o Duro que Dei, dirigido por Claudio Manoel (um dos integrantes do humorístico Casseta & Planeta), Micael Langer e Calvito Leal, que estreia nos cinemas neste mês. A verdade sobre Simonal emerge de uma miríade de depoimentos sensacionais, alguns verdadeiros furos de reportagem, que permitem ao espectador reconstituir com alguma precisão a verdade sobre o cantor. Antes de mergulhar fundo no momento que transformou radicalmente a vida de Simonal, no entanto, o filme se dedica a mapear sua trajetória e mostrar a dimensão de seu sucesso. Wilson Simonal de Castro nasceu em uma favela da zona sul do Rio de Janeiro, filho de uma empregada doméstica que trabalhava em residências em Ipanema e no Leblon. Sua vida começou a mudar quando o adolescente que não havia tido a oportunidade de estudar entrou para as Forças Armadas. Lá, descontraía os colegas recrutas cantando. Foi então descoberto pelo produtor musical Carlos Imperial (1939-1992), o mesmo que lançara Roberto Carlos no início da década de 1960. Em poucos anos, Simonal se transformou em um dos cantores mais populares do Brasil, tendo como único rival justamente o "rei" Roberto Carlos.
Numa das muitas cenas incríveis do documentário, Simonal aparece cantando para uma plateia de cerca de 30 mil pessoas no Maracanãzinho, numa época em que cantores só lotavam pequenas boates e teatros. O show fez parte da final do Festival de MPB da TV Record em 1969. O sucesso se devia, em parte, a seu carisma no palco. Simonal, mais do que um cantor, era o que os americanos chamam de entertainer, um showman talentoso e irresistível. Balançando os braços, ele levava a multidão a cantar como um maestro rege seus músicos. Em outra cena antológica do filme, aparece cantando em inglês ao lado de Sarah Vaughan, àquela altura considerada uma das maiores intérpretes do mundo (Simonal não falava inglês, mas com o ouvido privilegiado tirava as letras foneticamente). Fora dos palcos, o cantor ainda aparecia em comerciais de televisão. No fim da década de 1960, ele se tornou garoto-propaganda da petrolífera Shell, no maior contrato de publicidade assinado até então por uma celebridade brasileira. Seu modo de vida era de um popstar da época. Gastava o que ganhava em carros importados (tinha três Mercedes-Benz; Roberto Carlos, uma) e bons uísques e vivia cercado de mulheres lindas.
A tragédia começou em meados de 1971. O cantor viu sua conta bancária emagrecer e resolveu dar uma olhada na contabilidade da sua empresa, a Simonal Produções. Desconfiou que seu contador, Raphael Viviani, o estava roubando. É nesse momento que, com base nos depoimentos, é possível reconstituir com relativa precisão o episódio que mudou a vida do cantor. Em sua primeira entrevista longa em quase 40 anos, Viviani conta que foi procurado em casa por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Negando-se a assumir o roubo, foi levado para um dos muitos porões da ditadura. Apanhou, levou choques elétricos e acabou assinando a confissão de que havia, sim, desviado dinheiro. Segundo Viviani, na manhã que se seguiu à noite de torturas, o próprio Simonal apareceu no Dops — um indício de que os gorilas do regime teriam agido a mando dele.
Colocado em liberdade, Raphael foi prestar queixa em uma delegacia de polícia. Poucos dias depois, o caso ganhou as páginas da imprensa. Um inspetor, Mário Borges, deu uma entrevista dizendo que Simonal era informante do Dops — a afirmação sem provas que, amplificada, acabou ganhando contornos de verdade e destruindo a carreira do cantor, que nada fez para desmenti-la na ocasião. Ao contrário. Pressionado, o próprio Simonal deu entrevistas dizendo ser "de direita". Pior: justificou o fato de ter procurado o Dops usando uma história mirabolante. Acusou o contador de ser terrorista, tendo feito ameaças de atentado a ele por telefone. Segundo Viviani, Simonal teria sido orientado por um mau advogado a lançar mão de tal disparate. O contador faz questão de frisar, também, que nunca roubou — diz que as finanças do músico começaram a minguar quando a Shell rompeu o contrato com ele.
Pela surra encomendada, Simonal foi investigado e condenado em 1972 a cinco anos e quatro meses de prisão, cumpridos em liberdade. A pena, no entanto, foi o de menos. O pior foi o castigo imposto pela chamada "esquerda intolerante" — na expressão usada pelo falecido deputado Paulo Alberto Monteiro de Barros, o Artur da Távola —, que se aferrou à versão de que Simonal era delator, embora não houvesse nenhuma prova disso. De acordo com depoimentos dos filhos de Simonal, Simoninha e Max de Castro, vários artistas da MPB ligaram para casas de espetáculo ameaçando nunca mais tocar nos estabelecimentos caso shows do pai fossem contratados (os dois músicos não mencionam nomes). José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então um dos diretores da TV Globo, conta no filme como o cantor acabou banido também dos programas da emissora, embora não houvesse ordens expressas para isso. Segundo ele, a antipatia por Simonal era grande entre os roteiristas e diretores dos programas, motivo pelo qual ele não era mais convidado.
O ostracismo resistiu à redemocratização do país. Em 1995, Simonal chegou a procurar a Secretaria de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique em busca de um "nada consta" do Dops — ou seja, um documento que atestasse que ele nunca havia trabalhado, formal ou informalmente, para o órgão da repressão. Conseguiu-o, mas na época ninguém quis saber. Nas dezenas de depoimentos que compõem o filme, não se encontrou ninguém que soubesse de denúncia ou delação feita por Simonal, o que mostra que a afirmação leviana do inspetor Mário Borges era apenas isto: afirmação leviana. Capaz, no entanto, de destruir uma carreira de forma definitiva. Em 2000, Simonal morreu de falência hepática decorrente do uso compulsivo de bebida.
As duas mortes de Simonal — a primeira em 1972, com seu banimento como cantor, e a segunda em 2000 — começam a suscitar inúmeras análises. De acordo com o historiador Gustavo Alves Affonso Ferreira — que prepara um livro sobre o cantor, a ser lançado ainda neste ano pela editora Record —, havia dois lados bem definidos no fim dos anos 60. De um deles, estavam os generais e todo o simbolismo de que se cercavam ou era associado a eles: o tricampeonato da seleção brasileira na Copa do México, em 1970, o ufanismo dos desfiles militares, o "Brasil grande" com seus ícones, como a rodovia Transamazônica, a usina nuclear de Angra dos Reis e alguns cantores. Estes, identificados como bregas, não incomodavam a esquerda. Do outro lado, no "Brasil do bem", estavam os artistas eleitos pretores da resistência, mesmo sendo tão díspares como Caetano Veloso e Chico Buarque. E, meio fora desses dois mundos, havia Simonal. Definitivamente, ele não era brega: cantava ao lado de Elis Regina e Jorge Benjor e era parceiro de Roberto Menescal. Fazia parte do time de frente da MPB com sua música suingada, muito dançante e bem cantada. Talvez tenha sido essa a sua desgraça.A esquerda da época precisava de um Judas para malhar, e Simonal, com sua origem humilde, parecia não compreender o momento histórico. Sua mensagem política se resumia a exibir a pele negra e dizer que um sujeito de cor, nascido na favela, podia chegar ao sucesso. O linchamento de Simonal, assim, acabou sendo uma maneira enviesada de enxovalhar o regime. Para entender o que se passou, pode-se pegar de empréstimo, por fim, uma ideia do escritor e ensaísta italiano Roberto Calasso. Segundo ele, há momentos históricos em que a sociedade repete um rito primitivo de linchamento para expiar a própria culpa. Esse ritual se dá, metaforicamente, na forma de uma rodinha de pessoas em torno de um cadáver. Quem participa da rodinha pertence a uma seita vastíssima de devotos, inerme e persecutória, que Calasso chama de "Opinião Pública". Pode-se dizer que, nos anos 70, quem estava no centro da roda era Wilson Simonal.
O FILME
Simonal — Ninguém Sabe o Duro que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. Estreia prevista este mês.
Excelente reportagem. Só não concordo que a atitude do Pasquim em desenhar uma mão negra tenha sido racista. Se negra era a cor da pele do cantor reputado como delator, qual o racismo em retratá-la tal como era?
ResponderExcluirÓtima reportagem, parabéns
ResponderExcluir