Análise do perfil da mulherem algumas canções do corpus DIVISÃO DAS CANÇÕES EM GRUPOS DISCURSIVOS
Partimos de formações discursivas e formações ideológicas semelhantes, de modo que elas sejam amplamente justificadas, conforme as condições de produção do cancioneiro.
1. Figura feminina associada a “pecado”/a “proibido”, a “mal”, atravessada pelo interdiscurso religioso da primeira mulher, Eva. O léxico associado a “perdão” foi registrado: Da cor do pecado, Os homens são uns anjinhos, Para me livrar do mal, Pra que mentir, Eva querida, Mentiras de mulher... Total: 10 canções.
2. Figura feminina ainda atrelada aos discursos fomentados pela estética do Romantismo, a ela imputadas características de submissão, pureza, beleza, domesticidade, aquela mulher que é a base da família. De outra parte, na mesma formação discursiva, inscreve-se a “coita” de amor: Ai que saudades da Amélia, Emília.... Total – 27 canções.
3. Ao mesmo tempo em que é afirmada a posição da “Amélia”, mulher do lar, doméstica e domesticada, está presente a mulher que é exatamente seu antagonismo, mulher da “orgia”, do “samba”, a “prostituta de luxo”, a “mulher motivo de chacota pública”, a “que abandona o lar”: A mulher faz o homem, Mulher indigesta, Quatro horas... Total – 11 canções.
4. A construção discursiva maior, que se opõe à mulher “Amélia”, abre espaço não só para a mulher “da noite”, “da orgia”, mas também para a “negra e a “mulata”, esta considerada tipicamente como brasileira: Fez bobagem (atentar para a voz do eu lírico), O teu cabelo não nega... Total – 13 canções.
5. Mulher que se revolta diante da atitude boêmia do homem DISCURSO DE RESISTÊNCIA: Abre a janela, Se você jurar... Total – 8 canções.
TOTAL – 69 CANCÕES
No conjunto de letras do corpus que reunimos até o momento, a imagem da mulher ali refletida é dotada de heterogeneidade. Apesar de a época de 1930 a 1945 ser marcada por uma mulher coagida pelo controle social, pelas responsabilidades de esposa e mãe de família, pela instituição religiosa e por sua forte autoridade, uma outra figura feminina aparece:
Quatro horas da madrugadamulher, por que veio tarde assim?Você, quando vai para a orgiaemendando a noite ao diaNão se lembra mais de mim
(H. Martins / F. Senna, Quatro horas)
Essa outra mulher parece agir como um homem boêmio. O léxico, composto de palavras como “madrugada” e “orgia”, remete a uma figura de mulher da noite, dotada de furor sexual. Dela o homem cobra uma satisfação — são “quatro horas da madrugada” — e carinho — “não se lembra mais de mim”. O sentimentalismo romântico do homem diante da atitude masculina e fria da mulher mostra uma inversão nos papéis sociais tradicionais. O homem ocupa o lugar até então relegado à mulher. Nessa tendência de identidade discursiva, também podemos citar:
Eu nunca vi tanta exigênciaNem fazer o que você me fazVocê não sabe o que é consciênciaNão vê que eu sou um pobre rapaz (...)
Você só pensa em luxo e riquezaTudo que você vê, você querAi, meu
Deus, que saudade da AméliaAquilo sim é que era mulher.
(Ataulpho Alves/ Mário Lago, Ai que saudades da Amélia)
Nossa hipótese para esse tipo de construção da figura feminina é de que está em inscrição uma outra mulher, que deseja independência, que é vaidosa, que se preocupa com o próprio bem-estar e reivindica o equilíbrio das funções do lar. Nos dois últimos versos, podemos notar pistas do antigo lugar ocupado pela mulher, dentro do pensamento dominante na época.
Há, dessa forma, duas imagens de mulher inscritas na letra da canção “Ai que saudades da Amélia”, confirmando nossa hipótese de que podemos, analisando as condições de produção da música, perceber o perfil da mulher oscilando entre dois pólos:
a) a mulher sob o jugo da família, pura, casadoura, virgem, fiel, submissa ao marido após o casamento e cumpridora dos afazeres domésticos;
b) a mulher que busca o prazer, seja pelo luxo, seja pela liberdade, pelos novos desejos e exigências.
Nesse sentido, “Amélia” é atravessada por interdiscursos que colaboram na sua heterogeneidade constitutiva (Authier-Revuz: 1998). A exterioridade que cerca a imagem da mulher é o que permite que tracemos os dois pólos acima. Ali, em acordo com nosso recorte teórico, duas ideologias antagônicas se materializam:
a) a mulher do passado, nomeada “Amélia”, “mulher de verdade”, “dotada de razão”;
b) a mulher do presente, à procura do prazer de viver, tendo sua conduta dotada de emoção — “não tem consciência”.
Ainda em “Amélia, podemos ainda notar, a título de reforçar nossa hipótese de que a mulher está se deslocando de lugar naquela sociedade, a posição de resistência que ocupa o homem: sente saudades de uma mulher que sofria sem reclamar, ao contrário, apaziguava o que poderia ser índice de conflito:
Às vezes passava fome ao meu ladoe achava bonito não ter o que comere quando me via contrariadodizia: meu filho, o que se há de fazer?
Para se perceber o esforço do homem em manter o anterior controle sobre a mulher, veja-se:
Me respeite, ouviu?por favoro ambiente está carregado, ó filha(...) eu não quero perder a linha (...)eu já vim da rua um bocado aborrecido(...) em vez de me acalmar, para eu poder dormirvocê procura um pé para brigar, pra discutircala a boca, Lili
(“Me respeite, ouviu? / Walfrido Silva – 1933)
Certamente que a posição discursiva de resistência do homem é domesticada pelo recurso do humor (tanto em “Amélia”, quanto em “Me respeite, ouviu?”) e da aproximação da Amélia com uma mulher oriunda da população de menores recursos financeiros.
De outra parte, analisando a mulher da elite que viveu aquele período histórico, verifica-se que ainda estava sob o jugo de discursos hegemônicos e moralizadores. Ela não era “Amélia”, nem nunca fora. Todavia, se submetia da mesma forma ao seu esposo, não se achando no direito de questioná-lo, cumprindo seus “deveres” de esposa e mãe de família.
A instituição religiosa fazia parte dos recursos que permitiam o controle do deslocamento do lugar da mulher. A autoridade imposta pela tipologia do discurso religioso é reproduzida em diversas composições:
Todo mal que há no mundoFoi a mulher quem criousó não sabe esta verdadeQuem nunca experimentou
(Mesquita e Zeca Ivo. Os homens são uns anjinhos)
Acima, percebe-se a paráfrase bíblica da primeira mulher, Eva, expulsa do paraíso por não resistir à tentação da serpente. Também, no decorrer da letra da música, são notados traços típicos do discurso religioso como o emprego de antíteses — “diabinhos” x “anjinhos”; “verdade” x “mentira”/”falsidade”; “mulher” x “homem” (Orlandi, 2004).
O léxico configura-se predominantemente com substantivos relacionados à religiosidade: “anjos”, “diabinhos”, “diabo”, “encarnação”, “pecado”, “tentação”.
A mulher, nas letras acima, é o oposto da pureza romântica. Está no plano terreno/mundano, longe de ser idealizada pelo homem — “mulher é a mãe da mentira”.
Na mesma filiação discursiva, notamos outra produção:
Pra que mentir,se tu não tens esse domde saber iludir?Para quê? Pra que mentir,Se não há necessidade de me trair?Pra que mentir,se tu não tens a malíciade toda mulher? (Noel Rosa / Vadico – 1937)
Novamente, efeitos de sentidos relativos a uma demanda de razão da mulher são parafraseados. O homem chama a mulher à razão, tece argumentos que vão tirando da mulher motivos por que “mentir”. A busca pela razão é reiterada pelas orações condicionais, que constituem premissas para que se conclua a desnecessidade da mentira.
Analisando as condições de produção de “Pra que mentir”, pesquisamos o perfil da mulher que motivou a escritura da música. Trata-se de Ceci, uma mulher que trabalha como dançarina de cabaré, na noite. A informação nos foi relevante à medida que passamos a perceber outra direção discursiva do perfil feminino: o homem parece sofrer pela mulher que está fora do padrão social: pela dançarina de cabaré — que possui vários “affairs” — ou pela “morena” — a mulata que caracterizamos na introdução deste trabalho como figura do proibido.
Morena boca de ouroo que me faz sofrer o teu jeitinho que me mataroda, morena, cai , não cai(...) samba, morena, e me desacata,morena, em brasa viva (...)O amor é um samba tão diferente, morena,samba no terreiro, pisando sestrosa, vaidosa (...)morena, tem pena de mais um sofredor
(Ary Barroso. Morena boca de ouro)
Sobre a questão da mulata e sua presença em algumas produções da época, nossa hipótese inicial é de que estamos diante de uma ruptura com a tradição escravista: até então, o negro não tinha participação expressiva na cultura. As produções desse período, que misturam compositores da Zona Sul com aqueles que habitavam os morros do Rio de Janeiro permitem que os mecanismos de controle social (Foucault, 2003) abram um espaço, ainda domesticado por estigmas e preconceitos, para a etnia negra, maciçamente presente no país.
O teu cabelo não nega,mulata,Porque és mulata na cormas como a cor não pega,mulata,mulata quero o teu amor
(Lamartine Babo, & Irmãos Valença. O teu cabelo não nega)
O fragmento acima tem como efeito a contradição – admiração e preconceito em torno da figura da mulata convivendo na mesma materialidade lingüística.
Os interdiscursos que colaboram para a nossa hipótese se inscrevem no movimento estético e literário Modernista, eclodindo no país e sendo disseminado, através da paráfrase e da polissemia.
CONCLUSÃO
Procuramos com este pequeno ensaio trabalhar alguns conceitos introduzidos pela teoria da Análise de Discurso francesa, representada por Pêcheux, Orlandi, Mariani e outros. Nossos esforços se concentraram na leitura da bibliografia do curso e no aproveitamento do que já temos como material de pesquisa de doutoramento.
Reiteramos que este trabalho postulou lançar hipóteses iniciais acerca do corpus de que dispomos. Desta forma, pretendemos dar curso e aprofundar nossa pesquisa em termos do que vinha ocorrendo no período histórico em torno da mulher e identificar outras filiações discursivas e ideológicas que possam ter colaborado na significação da mulher do modo como descrevemos.
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