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sábado, 7 de março de 2009

A MULHER NEGRA NA MPB – UM ABALO NA IDENTIDADE RACIAL

Por Inaldete Pinheiro de Andrade


INTRODUÇÃO
Pontuar o racismo veiculado através da música popular brasileira não é assunto inédito. Outros pesquisadores e pesquisadoras já analisaram esta manifestação na literatura, como Franklin (1970), Moura (1976), Queiroz Jr. (1975), Brookshaw (1983), na poesia e na prosa. Bem recentemente a companheira feminista Maria Áurea Santa Cruz nos ofereceu uma belíssima análise da imagem da mulher na MPB (1992), onde verifica os toques racistas em algumas das músicas.

A nossa contribuição neste trabalho é o relato de nossa experiência junto a adolescentes negras num grupo de convivência para refletirmos sobre a identidade racial. Essas adolescentes vivem expostas a diversos tipos de violência cotidiana - moram em favelas, têm baixa escolaridade, sem oportunidade ao lazer... E, ainda um agravante: são negras ou mestiças, na sua maioria. A nossa preocupação em reforçar a identidade racial dessas adolescentes está baseada na noção do fortalecimento do seu eu perante o mundo, no qual a cor da pele dá acesso ou exclui as oportunidades.

Um Exercício de Reflexão Sobre ser Negra
Entre outras técnicas de motivação para refletir acerca da identidade racial, escolhemos três canções bem conhecidas, de penetração incontestável, seja na era do rádio, seja na era da televisão: O Teu Cabelo não Nega, de Lamartine Babo e Irmãos Valença; Nega do Cabelo Duro, de David Nasser e Rubens Soares; e Fricote, de Luiz Caldas.

Distribuídas as cópias das canções às adolescentes, ligamos o gravador com a fita K7, previamente gravada, e ouvimos as músicas, as quais lhes eram conhecidas. Cantaram e dançaram com euforia. Quando escutaram até a exaustão, sentamo-nos para analisá-las. Num primeiro momento, vieram posições evasivas, com deboche, como:

? As músicas falam da gente...
? ... do cabelo da gente (e faz gesto para o cabelo
voar ao vento).
? Músicas que todo mundo gosta de dançar e
cantar.
? Eu gosto destas músicas.

Chamando um pouco mais a sua atenção, elas pegaram o fio da meada:

? Estas músicas são contra nós.
? Elas nos xingam.
? Nos discriminam.
? Fricote estimula a violência física.
? Eu realmente não gosto do meu cabelo.
? Ele é ruim.
? Qual é o mal que ele lhe faz?
? Eu gosto da minha cor, mas não me casarei
com um homem negro.
? Por quê?
? Porque eu não gosto de ser motivo de xingação.
? Eles nos xingam para nos passar pra trás.
? Quando a gente vai procurar emprego se pede
boa aparência. Vejam os anúncios de jornais.
? Pra mim, boa aparência é estar asseada, não é
ser branca.

A Estética Negra e a MPB
A utilização do estereótipo sobre a mulher negra tem origem no período colonial e atravessou o tempo até os dias atuais como um controle social a esta população através de teorias hoje desmascaradas por vários segmentos das mesmas ciências que as defenderam, não contribuindo, porém, para retirá-las das práticas racistas.

Os estereótipos ? ditados, piadas, chavões, etc. ? exercem um efeito na estima da mulher que tem sua estética insultada desde a infância, através da educação formal e informal. Atacar a estética é um instrumento violento contra o processo de construção da identidade, numa sociedade onde a beleza está relacionada a um único padrão, fazendo a mulher negra assimilar aquele modelo como recurso para ser aceita na sociedade ? o que não acontece.

A música popular brasileira, por anos seguidos, tem aproveitado a sua penetração no inconsciente coletivo ? se assim podemos falar ? e dissemina um comportamento declaradamente preconceituoso e racista contra a mulher negra, reforçando os estereótipos negativos defendidos pela ideologia do embranquecimento.

Estas canções que usamos nas oficinas, entre outras que falam da mulher negra, referem-se a ela de maneira estereotipada, depreciando a sua imagem, colocando-a como uma mulher vulgar, e de estética desaprovada, sendo aceitável apenas a sua disponibilidade sexual.

Uma Identidade a Ser Re-Construída
A oficina de identidade racial a partir da estética tem um momento de depressão quando as adolescentes descobrem que cantam as músicas que são contra elas, que as inferiorizam, "que as passam prá trás". Criticam os compositores e os chamam de racistas. Umas continuam valorizando a estética branca, outras começam a pensar na beleza negra presente entre elas mesmas, nas possibilidades de penteados que o cabelo pixaim oferece ? traço racial mais discriminado nas canções ?, na vantagem da proteção da pele contra os raios solares, na capacidade de identificar como o racismo se manifesta e lhes nega a cidadania.

Esta afirmação do eu que essa oficina propõe é uma gota no mar de pressões a que essas adolescentes estão submetidas. A desassimilação será um exercício crescente que iniciamos com duas canções dignamente opostas às anteriores, que elevam a estima da negra e as convidam para realçar mais a sua beleza ? Beleza Pura e Preta, de Caetano Veloso e Beto Barbosa , respectivamente.

A tentativa de refletir sobre a identidade racial com as adolescentes negras é uma metodologia que o Centro Solano Trindade utiliza como uma linha de trabalho, na expectativa de encontrar, no futuro, mulheres negras mais dispostas a ocupar o espaço que lhes roubam, assumindo sua identidade de gênero e raça.

Conclusão
Na oficina de Identidade Racial, partindo do eixo da estética, utilizamos elementos da música popular brasileira pela capacidade mobilizadora que ela possui ? meio de mão dupla, usada negativa e positivamente. Muitos compositores reproduzem através das suas músicas todo o comportamento racista e sexista introjetado, provocando uma exaltação racista num segmento e a humilhação e negação do eu no outro segmento racial. Esta negação do eu repercute não só na violação da estética da mulher negra como em toda a herança histórico-biológica e histórico-cultural, que a faz assumir os valores da cultura branca, apelando para as plásticas dos lábios e do nariz (as poucas de classe média), o alisamento do cabelo e o sonho do marido branco ? nos dias de hoje, de preferência alemão.

Esta comunicação não é uma análise final. Ainda vamos nos aprofundar no estudo da imagem e da estética para subsidiar mais a nossa prática junto às mulheres negras: crianças, adolescentes e adultas.

Bibliografia
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na Literatura Brasileira. Mercado Aberto, 1983.
DISTANTE, Carmelo. Memória e Identidade. Identidade e Memória. Tempo Brasileiro, n. 95. out/dez, 1988.
FRANKLIN, Jeová. O Preconceito Racial na Literatura de Cordel. Revista de Cultura Vozes. Ano 64, v.LXIV, n. 8, out. 1970.
MOURA, Clóvis. O Preconceito de Cor na Literatura de Cordel. São Paulo: Ed. Resenha Universitária, 1976.
QUEIROZ JR., Téofilo de. Preconceito de cor e a Mulata na Literatura Brasileira. Ensaios, 19. Editora ática, 1975.
QUILOMBHOJE. Reflexões sobre a Literatura Afro-brasileira. Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, 1985.
SANTA CRUZ, Maria Áurea. A Musa sem Máscara - A Imagem da Mulher na Música Popular Brasileira. Editora Rosa dos Ventos, 1992.
SAYERS, Raymond S. O Negro na Literatura Brasileira. Edições O Cruzeiro, 1958.
SOUZA, Neusa S. Tornar-se negra. Graal, 1983.

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