Por Carla Marinho
Folheio o calendário e verifico que estamos na semana em que se comemora o centenário do nascimento de Maria do Carmo Miranda da Cunha, mais conhecida como Carmen Miranda, a portuguesa mais latina que se tem conhecimento. Latina porque ela acabou englobando um pouco de toda a cultura latina, numa grande salada de frutas. Termo, inclusive, bastante plausível, em se tratando dela. Os portugueses disputam a tapas a sua nacionalidade como sendo deles. E de fato, o é. Lá nasceu em 09 de fevereiro de 1909. É portuguesa de nascimento e certidão, a mesma com que embarcou para o Brasil ainda criança de colo e nos Estados Unidos anos mais tarde, já cantora consagrada. Mas é brasileira por ter sua família emigrado para o Brasil e aqui fincado raízes e trejeitos da nossa realidade. De Portugal o sangue. Do Brasil o sentimento. E se o local do nascimento não a define sentimentalmente como portuguesa, a sua caracterização como a brazilian bombshell, explorada por tantos anos nos Estados Unidos também não ajuda na sua definição como puramente brasileira. Então, fica a pergunta: a quem pertence, meu povo, a Carmen Miranda?
Carmen adotou esse nome para se apresentar pela primeira vez em um programa de rádio sem que seu pai percebesse. Tempos vigiados aqueles. O sucesso começou a tocar em sua porta depois que o compositor Josué de Barros a apresentou para a RCA, onde ela assinou um contrato para gravar o primeiro compacto que continha "Triste jandaia" e "Dona Balbina". O encontro por acaso, com Joubert de Carvalho renderia o samba "Taí", que seria seu primeiro grande sucesso. Pronto. A década seguinte seria sua. Para a RCA ela gravaria quase 300 canções que variavam entre sambas, marchinhas e músicas juninas. Músicas escolhidas por ela e com a dubialidade tão comum em nossas marchinhas, como pode ser verificada nos versos:
"Dizem que a vizinha tem um vidão / Mas que mora escondida num barracão / Rasga o jogo e o dinheiro voa / Não é vantagem, a vizinha é muito boa" (A vizinha das vantagens - Ary Barroso e Alcyr Pires Vermelho).
"Dorme filhinho do meu coração
Pega a mamadeira e vem entra no meu cordão
Eu tenho uma irmã que se chama Ana
De piscar o olho já ficou sem a pestana" (mamãe eu quero - Marcha De Jararaca E V. Paiva)
"O Tico-Tico ta, Tá outra vez aqui, O Tico-Tico tá comendo meu fubá"
(Tico-tico – Abreu Gomes)
Carmen Miranda era nossa. Tão nossa que logo começou a aparecer em produções nacionais como Alô alô Brasil e na mais famosa delas, Banana da terra (onde aparece pela primeira vez com o traje de baiana). Sucesso no Cassino da Urca, shows agendados pelo Brasil e Argentina e logo chamou a atenção de um empresário americano da Broadway, Lee Shubert que lhe ofereceu um contrato. O bando da Lua, com o qual ela sempre cantara, ficaria de fora, mas Carmen pagaria do seu bolso o salário do grupo que a acompanhava melhor que ninguém. Em time que se ganha não se mexe, diz um velho ditado nosso.
Carmem Miranda era agora deles. Embarcou para os Estados Unidos em 1939, o ano que eclodiu a 2ª guerra e que também são lançados os melhores filmes do cinema, como E o vento levou, Ninotchka e O morro dos ventos uivantes. O charme de mal saber falar inglês, mas ter o carisma tropical logo lhe trouxe admiradores, muitos deles famosos. Faria uma temporada e retornaria ao Brasil, onde faria shows beneficentes e que só lhe renderam dores de cabeça e drama: diriam alguns que ela voltara americanizada. O show fora produzido às pressas e não havia tido tempo de mudar o que ela já vinha apresentando fora do país. Carmen cantara muitas músicas com letras inglesas. Vaias e mais vaias. Depressão e o retorno aos Estados Unidos onde o carinho do dinheiro e do povo aparentemente a aguardavam. Lá passaria mais de uma dezena de anos sem vir ao Brasil, ou por medo ou por falta de tempo ou por ambos.
Seus shows na Broadway faziam sucesso, e ela passou a ser requisitada de uma forma quase escrava, fazendo várias apresentações em uma só noite em diversos locais. O cinema logo lhe descobriria e seriam mais 13 participações em filmes, nunca como protagonista, mas sempre como a coringa alegre e de certa forma robotizada e de sentimentos sempre positivos. Em pouco tempo, Maria do Carmo estaria esgotada fisicamente e viciada em pílulas, cantando rumbas, sambas em inglês ou sendo apresentada como brasileira e falando espanhol.
Carmen Miranda era do mundo.
Sua personagem é marcante, é inegável. Dificilmente alguém olhará a imagem da baiana estilizada com flores, frutas, balangandãs e plataformas e não dirá que já a viu em algum lugar. Como também é inegável a grande contribuição que essa personagem deu a mitificação das nossas terras como sendo um paraíso de malandros que vivem de samba, água de côco, rumba e futebol. Isso, rumba. Rumba que é um ritmo cubano ou coqueiros que nestas terras vastas chegaram com os portugueses. O Brasil exportado como banana boa de comer, como "Merenda", uma alusão minha a como eles pronunciavam o sobrenome de Carmen no "estrangeiro". Eles digeririam melhor a nossa Miranda se ela fosse apresentada desta maneira.
Perguntávamos no início a quem Carmen Miranda pertencia, e acabamos chegando a uma resposta: a ninguém. Nem a ela mesma. Para os americanos era a prova de que aceitavam outros povos, numa política de boa vizinhança, algo que eles sempre fizeram com astros latinos (um por vez) e que fazem questão de caricaturar; para os brasileiros um sentimento que varia entre a mágoa invejosa por alguém que ultrapassou as barreiras do país e fez sucesso, chegando a ser uma das mulheres mais bem pagas da América, e a adoração, pelo mesmo motivo. Povo confuso somos nós.
Carmen era o produto de consumo, que começou a morrer quando foi colhido pelos Estados Unidos, 16 anos antes de ser enterrada no Cemitério de São João Batista, no Rio. Antes mesmo de se tornar o mito que hoje é, incomparável. Tão incomparável quanto é irreversível a busca por folhas que se espalham ao vento.
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