segunda-feira, 20 de novembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




42 - Agnaldo Timóteo, Antônio Maria e Madame Satã

Grande cantor e grande coração, Agnaldo Timóteo conta uma passagem bem engraçada que o envolveu com minha mãe. Ele trabalhava para Ângela Maria, nos idos dos anos 50, como motorista particular. Um dia, a Sapoti deu a ele uma incumbência: toda segunda-feira, deveria acender uma vela na Igreja das Almas, na avenida Passos. Não poderia se esquecer disso sob hipótese nenhuma, pois era um compromisso que ela tinha assumido. Numa dessas segundas, ele foi levar um rapaz que estava namorando Ângela até Jacarepaguá. Deveria ficar esperando para trazê-lo de volta. E o tempo foi passando, a noite chegando, e nada de ele se ver livre para cumprir a promessa de Ângela. Já tarde e vendo que não havia a menor chance de estar na Igreja das Almas a tempo, Agnaldo começou a pensar que o que valia para o mundo espiritual era a intenção, não o endereço do gesto. Resolveu então acender ali mesmo. Saiu do carro, olhou à sua volta, procurando um canto mais escondido. Viu a entrada de uma casa de muros altos e portão grande. Não havia nenhum sinal de vida por ali, tudo quieto. Ele não perdeu tempo: acendeu a vela ali mesmo, num cantinho da entrada da casa. O que ele não podia imaginar era que a casa era de Dalva. E, quando já estava entrando no carro para sair, foi interceptado por Nuno, que queria saber a razão de alguém acender vela em frente da casa deles. Agnaldo tentou explicar, mas só piorou as coisas quando disse que trabalhava para Ângela Maria e a vela era dela. Nos dias seguintes, os jornais estampavam as manchetes: “Macumba na porta de Dalva”. “Ângela Maria faz macumba para Dalva.” Foi um alvoroço. Anos depois, já cantor famoso, Agnaldo diria em entrevistas que o mal que poderia desejar a Dalva era o mesmo que desejaria para sua mãe. Mas, até que se provasse que a promessa para a sua patroa não era macumba, muita confusão aconteceu. Corria mais ou menos o ano de 1960, quando eu, garoto cheio de esperanças e sonhos, vivia nas ruas de Copacabana, fascinado com o mundo da música. Certa noite, fui parar num restaurante que existia na esquina das ruas Fernando Mendes e Nossa Senhora de Copacabana, chamado Le Bec Fin, sem saber que ali era o ponto favorito de um dos grandes compositores da música brasileira, Antônio Maria. Aliás, soube depois que ele morava no mesmo quarteirão. Eu estava sentado bem no fundo, com alguns amigos, quando o percebi tentando atravessar a rua em direção ao Le Bec Fin. De onde eu estava, via sua figura vindo e crescendo à medida que se aproximava. E aí pude reparar como Maria era grande. Ao pôr os pés dentro do restaurante, sua estatura dominou o ambiente. Eu não conseguia tirar os olhos dele, fascinado com a visão do autor de “Dorme, menino grande”, canção que es-tava fazendo um tremendo sucesso com Nora Ney. De repente, ele me vê e vem em minha direção. Eu não entendia por quê. Quando chegou à minha frente, disse muito sério: “Ô, garoto, você sabe que qualquer dia vou matar seu pai?” “Matar meu pai, seu Maria? Por quê?” “Vou matar, sim, aquele cretino me arra-sou e acabou comigo!” “Mas o que ele fez, seu Maria?” “Ele compôs o samba que eu queria ter composto, ‘Caminhemos’. Aquele samba era eu que tinha de ter feito antes dele!” Passado o susto, pude rir e apertar a mão daquele sujeito genial e bem -humorado. Fiquei ainda mais fã de Antônio Maria de-pois desse encontro. Um bairro famoso do Rio, frequentado pela marginalidade e pela boêmia, que mereceu a atenção de Herivelto e até um samba dele, foi a Lapa. Essa homenagem, “A Lapa”, se transformou num dos grandes sambas de meu pai. Ele não era frequentador assíduo, mas volta e meia aparecia para encontrar seu compadre Benedito Lacerda, que às vezes se apresentava ali ou no Mangue, como era conhecida a “zona quente” do Rio. Benedito tocava até em calçadas e botequins baratos, junto com outros músicos, para complementar o orçamento. Recolhia uns trocados do público, no chapéu ou mesmo no fundo do pandeiro. Um sujeito se tornou uma verdadeira lenda nesse ambiente: Madame Satã. Era praticamente o dono da Lapa e o grande valente da época: brigava com a polícia, tombava camburão, batia em vagabundo. Homossexual, virava o cão quando alguém, inadvertidamente, o chamava de veado. Batia em quem quer que fosse. Era um monstro. Muito forte. Madame Satã chegou a frequentar algumas festas de aniversário de minha mãe, em Jacarepaguá. Era uma figura engraçada: baixo, muito parrudo, machão na postura, mas dava um pouco de bandeira na sua fala efeminada, meio cantada. Extremamente educado, era muito carinhoso conosco e com minha mãe. Olhava para ela como para uma deusa, completamente fascinado. Como todos sabiam na Lapa, ele admirava muito o Trio de Ouro e mais ainda Dalva de Oliveira. Com a briga entre meu pai e minha mãe, Madame Satã, como todos os gay s do Brasil, tomou as dores de minha mãe: chorava com suas canções, sentindo que sua doce Dalva estava sendo injustiçada. Um dia, meu pai, sem saber de nada, ficou frente a frente com Satã, na Lapa. Este, polidamente e com todo o respeito, chamou meu pai e disse: “Seu Herivelto, por favor, eu respeito muito o senhor e o aconselho a não voltar aqui na Lapa. Gosto muito da Dalva, mas quem fizer mal a ela, eu mato! E eu não quero fazer nada com o senhor, portanto desapareça daqui, seu Herivelto”. Meu pai, é claro, preferiu não arriscar e se manteve bem afastado da Lapa. Num tempo em que meu pai andava meio descrente da carreira (1974), o José Tjurs, dono do Hotel Nacional no Rio o convida para montar um grande show — daqueles do tempo dos cassinos — junto com o Caribé da Rocha. Começam a contratar a equipe: bailarinos, músicos, coreógrafo, figurinista... Herivelto participaria também com seu Trio de Ouro, ao lado de Lourdinha Bittencourt e Raul Sampaio. No elenco trabalhavam a Eliana Pittman e o Altamiro Carrilho — meu querido amigo e mestre na flauta! — e a direção do espetáculo, chamado Brazilian Follies, era do Maurício Sherman. Uma tarde, durante os ensaios, o Tjours traz a notícia de que o show iria representar o Brasil no Congresso da ASTA (American Society of Travel Agent) em Acapulco, no México. A equipe vibra! E o Tjurs se reúne com os organizadores — Sherman, Herivelto e Caribé — para discutirem o que acrescentar ao show nessa investida internacional. Foi unânime a ideia de que precisariam contratar um apresentador, um mestre de cerimônias — de preferência que também atuasse no espetáculo — com domínio dos idiomas inglês e espanhol. Meu pai então sugeriu a eles que eu — recém -chegado de Los Angeles e do México — poderia atender a essa necessidade, além de trazer mais brilho para o elenco. Acharam ótima a sugestão. E pediram a Herivelto para me levar até lá para conhecer o show e discutir a possibilidade de um contrato. Logo que cheguei para o ensaio, cheio de gente, dei de cara com a Eliana Pittman, que me fez a maior festa. Até então, ela não sabia da possibilidade de eu entrar no show. Na sala do Tjurs, junto com o Sherman e o Caribé, recebi oficialmente o convite e definimos meu contrato: eu seria o apresentador em inglês e espanhol de todo o show, além de passar a ser seu destaque masculino. Só que não contávamos com o estrelismo da Eliana, que quando soube da minha contratação ficou louca, pois queria ser a única estrela do show, sem outros nomes a concorrer com ela. Começou uma guerra sem precedentes. Logo nos primeiros shows no Hotel Nacional, ainda no Rio, tivemos prob-lemas com a Eliana e a Ofélia, mãe da artista. Primeiro era a questão do nome: a Ofélia não permitia que o nome da filha ficasse depois do meu, ou do Trio de Ouro. Era um clima terrível, de muito ciúme. Mesmo assim fomos até Acapulco. Lá, nos primeiros shows, o Sherman, percebendo que poderia haver problema se eu entrasse antes ou depois da Eliana — que não se conformava que eu entrasse primeiro apresentando o show em inglês e espanhol —, preferiu colocar o Trio de Ouro com meu pai, o Raul e a Lourdinha entrando antes ou depois dela. Tenho de explicar que, na época, a Lourdinha Bittencourt tinha um problema na perna e no pé, e não podia se locomover com muita rapidez; assim, qualquer mar-cação no palco teria de respeitar as suas condições físicas. Ora, o microfone da Eliana, quando ela terminava seu número, tinha de ser entregue a meu pai ou a Lourdinha. Teimosamente, ela não fazia isso, a introdução da música começava, e nem meu pai nem a Lourdinha chegavam a tempo de iniciar seus números. Por várias vezes, o maestro teve de parar, contar e dar a introdução novamente. Não preciso explicar, num show de blocos bem amarrados, como ficava feio. Isso aconteceu várias vezes, e sempre meu pai nos bastidores pedia a ela delicadamente que não fizesse aquilo, pois estava prejudicando o trabalho de todos. Além do desrespeito com a situação da Lourdinha. Imaginem a Lourdinha com o pé doente tendo de correr! Mas não houve entendimento. Ela con-tinuou a agir assim, e numa dessas vezes, ao terminar a apresentação do Trio, a Lourdinha saiu chorando. Meu pai, já bem nervoso com aquilo, foi até a Eliana, e controladamente pediu mais uma vez: “Minha filha, por favor, não faça mais isso, eu podia ser seu pai, respeite um pouco mais! Veja a Lourdinha, ela está se prejudicando, seu pé não permite que corra tanto, por favor!!”. Ela se virou e ofendeu meu pai, dizendo que, se ele era um velho, ficasse em casa e não lhe enchesse a paciência. E mais um monte de impropérios. Eu estava chegando perto deles, vi meu pai ser ofendido assim por ela, e tomei as suas dores. Ainda tentei ponderar com ela. Mas não adiantou. “Você não tem nada com isso, Pery; aliás, nem devia estar nesse show!”, desabafou Eliana. E, num gesto inesperado, virou-se e me deu uma sapatada na cabeça. Surpreso, tentei segurá-la. Começamos a nos debater, ela segura minha camisa e a rasga. Meu pai tenta apartar, a Ofélia vem chegando, vê aquela cena e parte para cima do meu pai. Olha, foi uma confusão! Só sei que nos embolamos os quatro, rolamos no chão, e eram tapas, sapatadas, roupa rasgada, gritar-ia, enfim, os quatro engalfinhados. Cada um saiu com galo na cabeça, olho roxo, boca sangrando. Foi uma briga feia. E inusitada na minha vida, pois eu realmente nunca fui de briga. á para imaginar como ficou o clima entre nós depois disso, não? Durante muitos anos, quando nos encontrávamos, eu, a Eliana e a Ofélia, evitávamos qualquer aproximação. Somente agora, mais recentemente, é que voltamos a nos falar... 



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