segunda-feira, 15 de agosto de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Pela segunda vez André Midani viu a fábrica de discos da Philips, no Alto da Boa Vista, cercada por tropas do Exército. A primeira tinha sido quando “Je t’aime moi non plus”, um dueto erótico de Serge Gainsburg e Jane Birkin, foi proibida pela Censura e André, recém chegado ao Brasil, achou que podia empurrar com a barriga e ir enrolando enquanto o disco vendia. Os discos foram recolhidos, ele levou uma descompostura de um coronel furibundo e quase foi preso. Com “Apesar de você” não foi muito diferente: com a habitual truculência, a fábrica foi invadida e todos os discos com a música de Chico foram apreendidos e destruídos. Menos a matriz... “Apesar de você” era a proibição mais pública do Brasil, o que a fazia ainda mais popular. Chico, mais uma vez, foi chamado a dar explicações e, cínica e deslavadamente, disse a seu interrogador que o samba era para uma mulher muito mandona e muito autoritária. E era impossível provar que não fosse. Gol de placa da guerrilha cultural. Com a vitória brasileira na Copa do Mundo e o boom econômico, que beneficiava a classe média, o governo militar promoveu uma agressiva campanha nacionalista — “Brasil, ame-o ou deixe-o” — e apertou a repressão. As rádios tocavam o dia inteiro “Pra frente, Brasil” e “Eu te amo, meu Brasil”, uma marchinha ufanista e oportunista dos jovem-guardistas Dom e Ravel, que foram execrados e banidos pelo mundo musical brasileiro por alta traição. “Apesar de você” era a nossa resposta. Dois meses depois da Copa, nasceu minha primeira filha, Joana. Assim que ela e Mônica voltaram para casa, fui para São Paulo
para trabalhar para a TV Globo numa eliminatória do festival. No dia seguinte fui chamado de volta às pressas e encontrei um quadro sinistro: Mônica estava internada em estado gravíssimo — tinha tétano, contraído na sala de parto da Beneficência Portuguesa, e poucas esperanças de se salvar.

O caso era desesperador: o tétano é uma infecção muito agressiva que ataca o sistema nervoso, provocando contrações musculares violentíssimas, capazes de quebrar ossos e provocar paradas respiratórias e cardíacas. Praticamente extinta nos Estados Unidos e na Europa, a doença não teve progressos nos seus tratamentos: além de doses maciças de antibióticos, manter o paciente sedado em uma espécie de coma induzido, em total imobilidade, silêncio e escuridão absolutos — o mais leve estímulo sonoro ou luminoso pode desencadear uma onda de contrações musculares e todas as suas terríveis consequências. Os médicos que mais entendiam do assunto trabalhavam num pequeno e modestíssimo hospital de doenças tropicais, na vizinhança da zona de meretrício do Mangue, onde Mônica poderia ser melhor tratada. Durante dois meses, eu, minha família e a dela e muitos amigos nos revezamos dia e noite, na porta do hospital. Não havia quartos para acompanhantes e nem salas de espera, as tênues chances de Mônica se salvar dependiam de seu completo isolamento e da dedicação e competência dos médicos. Da vontade de Deus. Minha vida virou pelo avesso. Passava as noites no carro, na porta do hospital, várias vezes fui chamado por meu pai e pelos médicos para me dizerem que me preparasse para o pior. Mônica enfrentou paradas cardíacas e respiratórias, quase morreu várias vezes, mas sobreviveu. Quase três meses depois voltou para casa, onde foi recebida com uma grande festa-surpresa por seus incontáveis amigos, entre eles Vinícius, Otto Lara Rezende, Walter Clark, Ronaldo e Elis.

Nem bem Mônica tinha voltado para casa, no início da noite de um sábado, fui surpreendido por visitantes ríspidos e mal-encarados. Quatro policiais, à paisana e fortemente armados, me dizendo que eu estava preso, à disposição do Exército. nada mais foi dito, por mais que eu tentasse perguntar. Falei que não tinha nada a esconder, que não fazia parte de nenhum grupo, que as minhas opiniões eram as que eu dava no jornal e na televisão — e que isso não era crime. Que minha mulher estava recém-saída do hospital e que tínhamos uma filha recém nascida. Nada. Pedi para dar um telefonema. Meu pai advogado estava fora da cidade e liguei para meu avô, que não só era ministro do Supremo Tribunal Federal como por graça divina morava no mesmo prédio, quatro andares acima: se morasse um pouco mais longe, ninguém saberia sequer para onde eu tinha sido levado. Foi a minha sorte: o velho Motta pegou um táxi e seguiu os carros que me levaram até o DOPS, na Rua da Relação. Lá, fiquei trancado em uma sala por horas, enquanto meu avô parlamentava com o general França, que era o secretário de Segurança. No meio da madrugada, ele entrou na sala com um policial que disse que podíamos ir para casa, que devido à situação de minha mulher e minha filha eu estava liberado e que seria chamado num outro dia para prestar depoimento, mas que não poderia sair da cidade.

Nos dias seguintes, o pessoal do Pasquim começou a ser preso, entre eles vários amigos próximos como Ziraldo, Sérgio Cabral e Paulo Francis. Embora só colaborasse no Pasquim muito de vez em quando, comecei a achar que minha prisão tinha alguma coisa a ver com eles, talvez eu fizesse parte do mesmo “arrastão”. Foram todos presos, menos Tarso de Castro, que era o diretor. Caçado pela polícia, onde Tarso foi se esconder? Num dos lugares menos recomendáveis: na minha casa. Lá ficou por dois dias — com meu pai furioso com a nossa irresponsabilidade. Mas o cerco apertou e quando a polícia prendeu sua mulher, Bárbara Oppenheimer, Tarso achou melhor se entregar. Apavorado, não saí da cidade por um bom tempo e aguardava a qualquer momento o temido telefonema me chamando para depor — que acabou nunca acontecendo. Nunca fiquei sabendo por que fui preso. Elis e eu começamos a trabalhar com grande entusiasmo no novo disco. Estimulados pelo sucesso do Lp “Em pleno verão” e do compacto de “Madalena”, mergulhamos num mar de músicas e de idéias. Cada vez mais próximos, nos entendíamos cada vez melhor, estávamos juntos tentando fazer o mais bonito, procurando os novos compositores, ouvindo as novidades internacionais, nos sintonizando com a juventude e os sonhos de nossa geração. O “Véio”, cada vez mais distante, rabugento e conservador, passava a maior parte do tempo em São Paulo, trabalhando na TV Record e no Blow Up, uma boate que tinha aberto com Miele na Rua Augusta. Mesmo assim, nunca ele e Elis brigaram tanto.

Numa noite quente de início de verão, fui visitar Elis na sua casa branca da Avenida Niemeyer, com Joyce e seu namorado. Convidei-a a mostrar suas novas músicas para Elis, que tinha gravado “Copacabana velha de guerra” (dela e de Sérgio Flaksman) no disco anterior e estava procurando novidades para o próximo. Novidade mesmo era a mescalina que Tim Maia tinha me dado. Segundo ele, era a mesma coisa que um LSD, só que orgânico, natural, mais leve. Ronaldo estava em São Paulo e nós no terraço marroquino que ocupava todo o teto da casa da Niemeyer, de frente para o mar. Dividimos a mescalina em quatro, tomamos e ficamos nas espreguiçadeiras ouvindo música e olhando as estrelas da noite carioca. De repente tudo ficou diferente, a música, as vozes, o vento, os cheiros e ruídos da noite, nossos rostos e corpos. Tudo parecia mais leve, mais claro, mais sensível. Falamos bobagens, fizemos planos absurdos e rimos durante muito tempo, dentro de um tempo que parecia suspenso, envolvidos por uma sensação de segurança e aconchego, de amor e de fraternidade, como era esperado nas viagens lisérgicas em busca de uma “nova consciência”. No fim da madrugada começou a esfriar, nos juntamos todos em duas espreguiçadeiras e nos cobrimos com uma manta. Pouco antes do dia nascer, Joyce e o namorado foram embora.

Ficamos abraçados debaixo da manta e começamos a nos beijar. Na manhã ensolarada, voltando para casa, minha cabeça e meu coração pareciam que iam explodir, simultaneamente. De alegria e de pavor. Completamente apaixonado por Elis e carregando uma culpa monstruosa, dirigi pelas curvas da Avenida Niemeyer sem saber se ria ou chorava, pensando em Ronaldo e em Mônica, nos nossos filhos João e Joana, no turbilhão pecaminoso em que tínhamos nos envolvido, e me perguntava se tudo tinha mesmo acontecido ou seria só um sonho ou um pesadelo. Ou uma viagem de mescalina que ainda não tinha acabado. Fiquei horas vagando sozinho pela casa. Mônica e Joana estavam em Cabo Frio e eu não conseguia parar de pensar em Elis e em todas as conseqüências de tudo aquilo. E o pior: não sabia sequer o que ela pensava e queria. E se tudo para ela não tivesse passado de uma explosão de carências numa viagem lisérgica, que tinha terminado ali? Ou se era mesmo para valer, se alguma coisa verdadeira tinha mesmo começado, por mais surpreendente e apavorante que fosse. Só quando Elis telefonou, à tarde, fiquei sabendo que, sim, minha vida não seria mais a mesma, sim. Como eu queria — e temia —, tudo o que tínhamos dito e feito estava valendo, sim.

Passei a viver entre o céu e o inferno, às vezes simultaneamente, fazendo o possível para não encontrar Ronaldo e o impossível para que Mônica não desconfiasse de nada. Sem despertar muitas suspeitas, podia estar sempre com Elis porque estava produzindo seu novo disco e porque também seria um dos produtores do novo musical da Globo, “Som Livre exportação”, que ela apresentaria junto com Ivan Lins. Eu me sentia um canalha vocacional de Nelson Rodrigues. E o homem mais feliz do mundo.



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