quarta-feira, 10 de agosto de 2016

BOSSA NOVA PERNAMBUCANA, UMA CENA MUSICAL POUCO LEMBRADA

Geraldo Azevedo foi um dos músicos que fizeram a bossa em PE


Por José Teles


Naná Vasconcelos, em 1966


O Recife também teve uma cena de bossa nova, com intérpretes e grupos. Capiba, inicialmente crítico do novo estilo de tocar e cantar samba, flertou com o movimento no álbum Sambas de Capiba, interpretado por Claudionor Germano. É certo que a BN aportou na capital pernambucana quando já enveredara pelo combos de samba jazz e pelas letras engajadas. Marcelo Melo (do Quinteto Violado), Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Sebastião Vilanova, Sergio Kyrilos, Zé Gomes e Clóvis Pereira, Paulo Guimarães, Edson Rodrigues, Ademir Araújo, Lizete, Euda, Terezinha Calazans e Jomard Muniz de Britto, que produziu, textos em um dos primeiros (senão o primeiro) livros sobre bossa nova. Esses são alguns dos nomes que atuaram na BN no Recife, esquecida e pouco documentada. Mesmo assim o Jornal do Commercio se propõe a contar um pouco da história deste momento riquíssimo ­ e esquecido ­, da música pernambucana.

Cantar resmungando ou gemendo pode ser uma demonstração nova de estilo, mas não significa muito. Isto vem a propósito de uma exibição de Terezinha Calazans cantando no programa de Alex no domingo último no canal 2. A menina tem a fisionomia parada, como uma imagem do Aleijadinho, e no mais sua voz é um filete d"água fraquinho e suave como um queixume de amor...". A crítica é do jornalista Medeiros Cavalcanti, publicada em 25 de abril de 1963, no Jornal do Commercio. Naquele ano, a bossa nova já havia se espalhado pelo mundo, mas ainda era artigo difícil de engolir para a maioria dos brasileiros, que preferia vozes potentes como a de Nelson Gonçalves.

A "Terezinha", citada por Medeiros Cavalcanti é a cantora Teca Calazans, que desde o início dos anos 70 mora na França e foi uma das pioneiras da BN pernambucana: "A bossa nova chegou tarde no Recife, e acredito que a aceitação do movimento BN na cidade está ligada à maneira de cantar as músicas. Aqui sempre existiu uma tradição importante de seresta, de voz de seresteiros. Acho que isso contribuiu para uma certa reticência do movimento. É engraçado ler que cantar bossa, na época, é igual a cantar desafinado", comenta a Teca, em entrevista por e­mail. Marcelo Melo, Sergio Kyrilos, Sebastião Vila Nova, Lizete Margarida, Zélia Barbosa, Toinho Alves, Luciano Alves, José Gomes, Geraldo Azevedo, Paulo Guimarães, Delmiro Lira, Marcus Vinicius de Andrade e Naná Vasconcelos foram alguns dos nomes destacados na esquecida bossa nova pernambucana:

"Eu fui considerado o melhor baterista de bossa nova do Recife. Tenho até hoje um troféu que ganhei na época", jactava-­se o percussionista Naná Vasconcelos, falecido em março deste ano. No início dos anos 60, ele participou do Quarteto Iansã, que chegou a fazer shows em Portugal, onde gravou acompanhando o cantor Agostinho dos Santos: "Era formado por mim, Lucas, Sérgio Kyrilos e Camilo, um cara que já faleceu. Depois participei do Bossanorte, com Toinho Alves e Marcelo Melo. Fiz vários shows com Teca Calazans, com Zélia Barbosa, que era a nossa Elis Regina", contou Naná.

A Fafire era um dos espaços referidos para musicais de BN, mas eles aconteciam em bares como o Canavial, o TPN, no Teatro de Arena ou na Rádio Jornal do Commercio, num programa apresentado por Washington França, que não apenas tocava os sucessos da BN como levava os bossa­novistas recifenses para cantar ao vivo. A TV Jornal do Commercio manteve por mais de ano o programa Bossa 2, apresentado por José Maria Marques. Quem também teve programa de bossa nova foi Geraldo Azevedo. Mas em Petrolina, onde morava. Chamava­-se Por Falar em Bossa Nova e ia ao ar pela recém­-inaugurada A Voz do São Francisco. Detalhe: ele tinha apenas 16 anos:

"Em Petrolina as novidades não chegavam logo. Comecei a ouvir João Gilberto, atravessado, já no segundo disco, O Amor o Sorriso e a Flor. Quando ouvi Desafinado, aí entronchou tudo", conta Geraldo Azevedo, único dos bossa­novistas pernambucanos que teve o privilégio de conhecer João Gilberto pessoalmente, em pleno auge da BN: "João foi a Juazeiro visitar o pai dele que estava doente. João já tinha lançado LPs, já era famoso, eu com apenas 16 anos, dá para imaginar como fiquei. Um amigo comum, Edésio, me levou para conhecer João Gilberto, uma pessoa muito educada, gentil. Combinamos de tocar violão juntos no dia seguinte. Mas tive azar, o pai dele morreu e o encontro não aconteceu. Conversei com ele anos mais tarde, nos falamos por telefone, mas nunca nos vimos".

O impacto causado na primeira audição de bossa nova não foi privilégio de Geraldo Azevedo, aconteceu também com Teca Calazans: "Eu ouvi João Gilberto pela primeira vez no rádio. Foi um choque! Inesquecível, cantando Lobo Bobo. Eu levei um tempo pra entender o que era aquilo. Fiquei fascinada! Eu estava acompanhada de um colega que não entendeu nada e disse: Que porcaria, esse cara não tem voz, canta desafinado e ganha dinheiro". A reação do violonista Marcelo Melo, do Quinteto Violado, foi até mais além: "Achei muito estranho, porque os acordes não batiam com a tônica. Aqui a gente tocava baião, frevo, música boa, mas quadrada. Quando entrou aquilo, João Gilberto, Carlos Lyra, eu achava um mistério. Foi quando Sérgio Ricardo passou um tempo no Recife e ficamos amigos dele. O cara era do meio bossa­novista no Rio, sabia como se tocavam aquelas músicas e passou as harmonias para a gente. Quem lembro de ter aprendido primeiro foi Sebastião Vilanova, que musicou uma peça chamada Cantochão, dirigida por Benjamim Santos, com músicas que já tinham aquelas harmonias diferentes".

Onipresente na cultura pernambucana há mais de cinco décadas, o escritor Jomard Muniz de Brito não poderia ter ficado fora da bossa nova. Ele é autor de um dos primeiros livros (se não o primeiro) sobre a BN: Do Modernismo à Bossa Nova (lançado pela Civilização Brasileira, com prefácio de Glauber Rocha). "Fiz este livro por influência da minha participação na bossa nova. Ele inclusive está sendo relançado, em São Paulo, pela Ateliê Editorial", diz Jomard Muniz de Brito, para quem a grande figura da BN pernambucana foi Teca Calazans: "Túlio Feliciano (ex­ator e produtor de shows musicais, hoje morando no Rio) dizia que Teca fez uma leitura muito própria da bossa nova, que não tinha nada a ver com o que Nara leão fazia. Mas a parte que me coube nesse minifúndio aconteceu depois do golpe de 64. Fiz direção musical de alguns shows, com o Mora na Filosofia e o Em Tempo de Bossa Nova. Naquele tempo eu era o queridinho das freiras da Fafire e conseguia o auditório para estes shows", lembra Jomard.

Por essa época a bossa nova já não era mais a de bucólicos barquinhos singrando o oceano, nem de longilíneas sílfides inspirando compositores enquanto iam a caminho do mar. Tornara­-se um instrumento de combate à ditadura militar que se instalara no país. "Os shows de 1964, 65, eram politizados, influenciados pela canção de protesto que vinha do Sul: Nara, Edu Lobo, Sergio Ricardo e os shows Opinião e Arena Conta Zumbi. Quando Nara Leão esteve no Recife, ela foi nos visitar, no Grupo Construção, na sede do AIP. Superssimpática, falando de música, de disco, do grupo Opinião e dando a maior força à gente", confirma Teca Calazans.

Jomard Muniz de Brito, que era do grupo Raiz, lembra que essa bossa nova de esquerda começava a incomodar o poder: "No show Mora na Filosofia aconteceu um episódio curioso. O auditório estava superlotado. Quando terminou havia uma equipe filmando as pessoas saindo. Fiquei empolgado com aquilo, imaginando que fosse alguma TV registrando o acontecimento. Depois soubemos que aquele pessoal era do SNI". Se essas filmagens ainda existem, são dos poucos registros da bossa nova pernambucana.

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