segunda-feira, 27 de junho de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



No dia seguinte, ele me dizia e eu publicava na coluna: “O importante é não abrir concessões à repressão e assim vou continuar agindo, sem pensar onde possa parar, eu ou a minha carreira. Nós somos a revolução encarnada.” No fim do ano, depois de tudo que tinha acontecido no Rio e em São Paulo, o festival da Record de 68 não despertou as mesmas paixões e a grande final foi morna. A vencedora foi a irônica “São, São Paulo, meu amor”, do tropicalista Tom Zé, apresentada por ele e Os Mutantes. Rita, Sérgio e Arnaldo também brilharam com “2001”, uma hilariante sátira sertanejo-espacial em parceria com Tom Zé que ficou em quarto lugar. Mas o maior impacto do festival foi a música classificada em terceiro pelo júri, “Divino maravilhoso”, de Gil e Caetano, cantada sensacionalmente por Gal Costa, acompanhada por uma banda de rock, com gritos e guitarras, cheia de brilhos e transparências, numa radical transformação da ex-Gracinha gilbertiana em uma explosão hendrixiana.

“Divino maravilhoso” foi também o nome do programa que Gil e Caetano comandaram fugazmente na TV Tupi, onde radicalizaram ainda mais as propostas anárquicas do tropicalismo e provocaram indistintamente a esquerda e a direita. Num dos programas, Caetano, dentro de uma jaula, arrebentava as grades e cantava: “Um leão está solto nas ruas”, um sucesso de Roberto Carlos. Em outro, Gil performava Jesus Cristo numa versão tropicalista da “Última ceia”, com os apóstolos cantando e comendo e jogando bananas e abacaxis para o público, uma espécie de Evangelho segundo o Chacrinha. No início de dezembro, o pior aconteceu: foi decretado o AI-5. Censura total, repressão pesada, cassações e prisões: terror. No dia seguinte, perplexo e apavorado como toda a redação, fui estimulado por Samuel a escrever uma coluna sobre Bob Dylan, o rebelde, o Chico Buarque americano. Escrevi apaixonadamente. No outro, ele sugeriu Melina Mercouri, uma artista que lutava pela liberdade contra a ditadura dos coronéis na Grécia. Depois Joan Baez e os direitos civis. Três rebeldes internacionais depois, a coluna saiu pela última vez, não como “Roda-viva”, mas com o título de “Chão de estrelas”, da antiga canção de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, uma última gargalhada tropicalista.

“Minha vida era um palco iluminado — eu vivia vestido de dourado palhaço das perdidas ilusões...” A coluna foi suspensa por tempo indeterminado. No último “Divino maravilhoso”, que foi ao ar na antevéspera de Natal, Caetano cantava “Boas festas”, de Assis Valente, com um revólver apontado para a cabeça: “Já faz tempo que eu pedi mas o meu Papai Noel não vem com certeza já morreu ou então felicidade é brinquedo que não tem.” Logo depois do Natal, Gil e Caetano foram presos. Poucos dias antes da prisão de Gil e Caetano, Chico Buarque acordou às sete da manhã com a polícia em casa e foi levado ao Ministério do Exército, onde passou o dia depondo sobre sua peça, suas músicas e suas ideias. Recebeu ordens de não sair da cidade e teve que pedir uma autorização especial para poder viajar no início de janeiro para se apresentar no Festival do MIDEM — Mercado Internacional do Disco e Edições Musicais —, em Cannes, com Marieta grávida de seis meses. De lá foi esperançoso para a Itália, onde a gravação de “A banda” com a popularíssima Mina tinha estourado e tornado seu nome conhecido. Em vão: o lançamento italiano de seus sucessos brasileiros reunidos em um disco teve boas críticas mas foi ignorado pelo público. Um outro disco, com as versões de suas letras em italiano feitas por Sérgio Bardotti e com arranjos de Ennio Morriconi, também não aconteceu. Gil e Caetano continuavam presos no Rio de Janeiro. Muitos outros amigos estavam presos e desaparecidos. As notícias do Brasil eram aterrorizantes.

Convencidos por Vinícius, que estava em Roma, Chico e Marieta decidiram ficar na Itália, onde nasceu sua primeira filha, Silvia. No calorão de janeiro de 1969, na varanda do Antonio’s, eu pensava em Caetano preso enquanto o rádio tocava o seu frevo rápido e alegre, esfuziante, chamado “Atrás do trio elétrico”, que todo mundo tinha adorado, de Os Mutantes a Edu Lobo. Uma unanimidade. De volta ao Rio começamos a trabalhar freneticamente no projeto. O espaço era excelente, destinado a um teatro de 400 lugares, e utilizando minhas observações da “viagem de estudos noturnos” e meus conhecimentos da escola de design, projetei-o com um palco, uma imensa pista de dança branca e preta e, novidade absoluta, uma arquibancada de 20 degraus, forrada de tecido jeans.

Não haveria “consumação mínima” nem “couvert artístico” como em todas as boates e casas noturnas, não haveria seleção na porta, as entradas seriam vendidas para qualquer um numa bilheteria, como em qualquer show. Preços populares. Faltava um nome. Havia na parede do escritório uma grande lista, onde cada um ia escrevendo suas sugestões. Uma tarde, um jovem ator amigo, que sempre dava uma passada quando estava por perto, juntou
dois da lista e sugeriu “Frenetic (que eu gostava menos) Dancing Days” (meu favorito, tirado de uma música do Led Zeppelin). Todo mundo gostou da sugestão de Marco Nanini, bati o martelo e o designer Nilo de Paula criou — em letras de néon, naturalmente — o logo de The
Frenetic Dancing Days Discotheque, com inauguração marcada para o dia 5 de agosto de 1976, aniversário de morte de Carmen Miranda e de Marilyn Monroe, no quarto andar do deserto Shopping Center da Gávea. “Dancemos todos, dancemos, amadas, mortos, amigos, dancemos todos até não mais saber-se o motivo.” Os versos de Mário Quintana ilustravam os convites para a noite de estreia.

Para servir as poucas mesas espalhadas em volta da pista de dança, eu não queria garçons, mas garçonetes, como as novaiorquinas, alegres e divertidas, atrizes representando garçonetes. Assim que falei da ideia, minha cunhada Sandra Pêra se interessou pelo papel e me disse que chamaria suas amigas Regina Chaves, Leiloca e Lidoka, que tinham participado da trupe feminina das Dzi Croquettes, dirigida por Lennie Dale, e uma ótima cantora, Dulcilene de Morais, a “Nega Dudu”. Indicada por Dom Pepe, a mulata Edir de Castro, bailarina da trupe Braziliana, completou o grupo. Mas elas não seriam só garçonetes, no meio da noite subiriam ao palco de surpresa, cantariam três ou quatro músicas e depois voltariam às bandejas. Ficaria muito simpático e original, elas se divertiriam mais e provavelmente melhorariam muito as gorjetas. Escolhemos cinco músicas, de Rita Lee (“Dançar para não dançar”), dos Rolling Stones (“Let’s Spend the Night Together”), de Raul Seixas (“Let Me Sing”) e dois clássicos da jovem guarda (“Exército do surf” e “O gênio”), e chamei Roberto de Carvalho, o novo pianista, guitarrista e namorado de Rita Lee, para ensaiá-las. No seu apartamento em Copacabana, Roberto criou os arranjos, distribuiu as vozes, ensaiou-as exaustivamente e sobreviveu ao fogo cruzado de seis mulheres falando ao mesmo tempo, com opiniões diferentes. Nasciam as Frenéticas. Na noite de estréia, elas estavam com malhas colantes de lurex prateado, do pescoço aos pés, de saltos altíssimos, bocas vermelhas e bandeja na mão. Momentos antes de as portas de vidro se abrirem para centenas de pessoas, uma parede da sala de entrada ainda estava sendo pintada.

Fora isso, estava tudo pronto para os convidados do meio musical e da TV Globo, para amigos cinema-novistas, jornalistas, surfistas, socialites, psicanalistas e comunistas: a praia inteira, na grande boca livre, na festa carioca da semana. Mais de 700 pessoas abarrotaram pista e arquibancadas, bar e sala de entrada, mesas e banheiros. Quase às duas da madrugada Rita Lee subiu ao palco com sua nova banda e novo show, “Entradas e bandeiras”, e levantou o público com uma performance sensacional. Abriu com seus hits “Ovelha negra” e “Esse tal de roque enrow” e fechou apoteoticamente com sua nova música em parceria com Paulo Coelho, “Arrombou a festa”, que gozava e sacaneava os grandes personagens da música popular brasileira. Era uma versão atualizada e debochada da “Festa de arromba” da jovem guarda. “Ai, ai meu Deus, o que foi que aconteceu com a música popular brasileira? Todos falam sério, todos eles levam a sério, mas esse sério me parece brincadeira...” Assim que voltou a São Paulo, Rita Lee foi presa: uma blitz policial em sua casa encontrou uma bagana de maconha e ela foi levada algemada para a delegacia. Deu no “Jornal nacional” e saiu na primeira página de todos os jornais. Mas eu soube antes, à tarde, em um telefonema aflito de sua empresária Mônica Lisboa. Liguei para o advogado Técio Lins e Silva, que me indicou em São Paulo o Dr. José Carlos Dias. Numa ação espontânea e surpreendente, Elis Regina foi com os dois filhos, João, de seis anos, e Pedro, de um, para a porta da delegacia e fez um escândalo, falou para todas as rádios e televisões em apoio a Rita — que não conhecia, com quem nunca tinha falado, nem mesmo em bastidores de televisão e de festivais. Rita era o rock, Elis a MPB. Elis mandou-lhe um bilhete amoroso e convidou-a para participar de seu especial de fim de ano na Bandeirantes. Por ser primária, Rita, grávida de seu primeiro filho, foi solta para responder ao processo em liberdade.

O compacto de “Arrombou a festa” estourou nas rádios e nas lojas, com Rita vestida de presidiária na capa. A boca-livre inaugural do Dancing Days foi um sucesso, mas no dia seguinte, aberto ao público pagante, só apareceu meia dúzia de gatos pingados. Comecei a ficar preocupado. No outro dia, com anúncios nos jornais, telefonemas desesperados a colunistas, convites distribuídos e esperanças renovadas, recebemos pouquíssimas visitas. Fiquei preocupadíssimo. No terceiro dia, uma sexta-feira, ressurgimos dos mortos e a casa encheu, com um público jovem e animado que tinha lido nos jornais e ouvido na praia o boca a boca sobre a sensacional festa de abertura da nova discoteca na Gávea, com muitos amigos voltando. No sábado, mais de 700 pessoas, casa lotada, público animadíssimo, adorando tudo, enchendo a pista, namorando nas arquibancadas, dançando e se divertindo com o showzinho das Frenéticas, que foi aplaudido freneticamente, muito além das nossas expectativas mais otimistas. Acrescentamos mais duas músicas ao repertório delas.

Em sua cabine de som, atrás de seus pick-ups, Dom Pepe gritava “Vou fazer vocês pular feito pipoca!”. E a pista explodia com hits de James Brown e dos Rolling Stones, de Rita Lee e de Raul Seixas, misturados com os sucessos da disco music trazidos de Nova York. Com um projetor de 16mm emprestado, Dom Pepe exibia numa tela sobre o palco números musicais filmados cedidos pelas gravadoras, com Bob Dylan (“Hurricane”), David Bowie (“Soul Train”), Eric Clapton (“Cocaine”) e se transformava no primeiro “film-jockey” do Brasil. O público nunca tinha visto aquilo e adorava. O volume era ensurdecedor. Em duas semanas o Dancing Days se tornou a febre da cidade. Misturados ao jovem público da Zona Sul que enchia a casa, estrelas e personagens das noites cariocas, músicos, intelectuais, esportistas e até artistas que não frequentavam a noite, como Milton Nascimento e Maria Bethânia, dançavam no frenético Dancing Days. A casa era tão democrática que uma noite o pintor Jorge Guinle Filho, surpreso, encontrou na pista a sua empregada doméstica: os dois tinham
comprado entrada na mesma bilheteria e dançavam na mesma pista. O ambiente era tão sexy e tão liberal que as escadas escuras do shopping deserto se enchiam de gemidos e de casais de todos os sexos, enquanto outros, mais ousados, preferiam os cantos escuros debaixo das arquibancadas, protegidos por cortinas. Por pressão popular, as Frenéticas passaram a cantar mais músicas e a servir menos drinques e se tornaram a grande atração da casa.

Muita gente ia lá só para ver as Frenéticas, de espartilhos negros, cinta-liga, meias de náilon e saltos altíssimos, num show de mais de uma hora, obrigadas a incontáveis “bis”. Bandejas, nunca mais. Mas a essas alturas não havia mais mesas no Dancing Days, era tudo pista de dança.No Dancing Days lancei meu primeiro livro, uma coletânea de contos temerariamente publicada por um vizinho de porta do escritório de Ipanema, o jovem Paulo Rocco, que iniciava sua editora numa salinha apertada como a minha. Paulo teve muito boa vontade: com exceção de três ou quatro boas histórias (Antônio Calmon queria filmar uma delas, de sexo e terror), o resto do livro, escrito às pressas, sem edição, sem revisão, era uma mistura caótica — que não deu certo de algumas boas ideias com um monte de bobagens. O piromaníaco foi um fracasso de vendas e passou despercebido pela crítica. Mas a noite de autógrafos foi divertidíssima, misturando meu avô e seus amigos velhinhos da Academia Brasileira de Letras com gatas e surfistas de Ipanema, artistas e doidões, jornalistas e cinemanovistas, colegas da TV Globo e amigos de Marília do teatro, todos dançando contentes em efervescente boca-livre lítero-discoteca.

No meu aniversário o pessoal preparou uma festança-surpresa, com convidados e equipe, inclusive os seguranças, fantasiados de criança, as Frenéticas de uniforme de grupo escolar. Era uma festa infantil para adultos, com engolidor de fogo, pipoqueiro e carrocinha de algodão-doce na pista, mamadeiras de champanhe de boca em boca. A praia tremeu quando se espalhou o boato que o Dancing, como era chamado na intimidade, estava com as noites contadas: fecharia no dia 5 de novembro para começarem as obras do Teatro dos Quatro. A confirmação da notícia levou a legião de habitues ao desespero e provocou uma corrida dos que queriam conhecer o Dancing Days antes que acabasse. Foram milhares de pessoas, noites e mais noites de festa e dança, onde gente de várias classes e gerações se misturava, uma usina de alegria nas noites cariocas.

Mas, antes de fechar definitivamente, o Dancing foi fechado três vezes pela Administração Regional da Gávea, por não ter alvará nem qualquer licença de funcionamento: a casa era totalmente ilegal, pirata, fantasma. Com as portas do Dancing lacradas, fui conversar com o administrador regional, que era um senhor muito simpático e compreensivo, mas dizia que não podia nos dar um alvará porque naquela zona não eram permitidas casas noturnas. Mesmo no quarto andar de um shopping center deserto?, eu argumentava. Não incomodávamos ninguém, estávamos pagando impostos sobre a bilheteria e o movimento do bar, nossa firma estava em ordem com suas obrigações fiscais, era só mais um mês (embora fossem dois) e a casa fecharia. Ele refrescou e a casa reabriu. A mesma sequência se
repetiu mais duas vezes, completa: com a boa vontade do administrador e a promessa de que iria fechar, a casa reabria. Até o último dia, o Dancing Days jamais teve um alvará ou qualquer licença de funcionamento, começou e terminou absolutamente fora da lei. Já nos últimos dias, fomos fechados pela Delegacia de Polícia da Gávea, atendendo à reclamação de uma vizinha de fundos, que não conseguia dormir, enlouquecida com o barulho. Fui ao apartamento da reclamante, uma senhora educada, escritora de livros infantis, para tentar uma solução. Ela pediu que eu telefonasse para o Dancing Days e mandasse ligar o som, para ouvir o que ela ouvia todas as noites. Telefonei, cético, porque o apartamento era muito distante, mas quando ligaram o som, tremi: do imenso exaustor do Dancing Days vinham não só ar e fumaça de dentro, mas um rio de som que desaguava direto na janela do quarto da pobre senhora.

Constrangido, pedi desculpas e ofereci-lhe imediatamente um ar-condicionado. Me comprometi a colocar isolante acústico na parede que dava para a sua janela. No dia seguinte, forramos toda a parede interna do Dancing com embalagens de ovos de papelão, recomendadas por nosso técnico de som, Ray, um garotão australiano. Adiantou, mas não muito: quando a noite pegava fogo, Dom Pepe e Ray se entusiasmavam no volume e a professora não conseguia dormir. E entrou com um processo para fechar a casa. Mas como faltavam poucos dias para o fim da temporada, antes de qualquer medida judicial, tivemos morte natural e anunciada, no auge do sucesso, sem conhecer a decadência de todas as casas noturnas de sucesso. Muita gente, como o jovem Cazuza, de 17 anos, filho dos amigos João e Lucinha Araújo, um dos frequentadores mais assíduos e animados, chorava na última noite. O Dancing Days começava a virar uma lenda nas noites cariocas.

Entre os vários personagens que marcaram o Dancing, uma das mais bonitas e festejadas era uma jovem atriz paranaense que tinha estourado na novela “Gabriela” e era nossa amiga da praia, uma morena que enlouquecia a pista com sua alegria e seu sex-appeal. Sônia Braga
tinha 24 anos e foi a musa que inspirou Caetano Veloso a compor o sucesso “Tigresa”: “Ela me conta sem certeza Tudo que viveu Que gostava De política em 1966 E hoje dança No Frenetic Dancing Days Ela me conta que era atriz E trabalhou no Hair, Com alguns homens foi feliz, Com outros foi mulher” Dez anos tinham se passado, desde o idealismo hippie, da generosidade revolucionária e do romantismo transformador que marcaram nossa geração. Nos Estados Unidos e na Europa, eles celebravam com sexo, drogas e disco music suas lutas e conquistas e queriam mais. No Brasil, depois de 12 anos de ditadura militar, a escalada repressiva que tinha chegado a seu ponto mais agudo com o assassinato de Vladimir Herzog experimentava uma pequena mas significativa distensão. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército em São Paulo como responsável pela área em que ocorreu o crime, enquadrou o aparelho repressivo e sinalizou que mesmo a “guerra contra-revolucionária” tinha limites. E que havia uma possibilidade de abertura, lenta e mínima que fosse. Era um novo carnaval, aquele carnaval que sonhamos na cobertura de Vinícius no dia daquela foto.

A música era um sucesso, estava alegrando o Brasil, mas Caetano estava preso. E ninguém sequer sabia disso, os jornais sob censura não davam nada, não se podia falar no assunto, as redações estavam cheias de informantes do SNI. A coisa estava feia. Ouvindo “Atrás do trio elétrico” me lembrei de uma noite naquele mesmo Antonio’s, logo no início do tropicalismo e da polêmica com as guitarras “estrangeiras”, quando Caetano me surpreendeu com a história de que existia na Bahia, desde os anos 50, uma forma muito popular de música de carnaval, que era tocada pelas ruas em cima de um caminhão, por uma guitarra e um cavaquinho, chamados de “paus elétricos”, que junto com a percussão formavam o “trio elétrico”. Achei muita graça do nome e de toda a história, e embora nunca tivesse ouvido um “trio elétrico” entendi que esses vanguardistas da folia tocavam com seus instrumentos estridentes os grandes sucessos do ano — nacionais e internacionais — em ritmo de frevo rápido, carnavalizavam tudo, faziam pura antropofagia cultural. E o povo dançava e cantava em volta, com alegria e naturalidade. E o pessoal no Rio e em São Paulo tinha se espantado com umas guitarrinhas de nada, divertia-se Caetano.

Naquele verão, fui à Bahia pela primeira vez. Vi um saveiro de verdade, vi vários. Vi fascinado os personagens de Caymmi e Jorge Amado andando pelas ruas, conheci amigos de Glauber Rocha. Da janela do Hotel da Barra via passar o trio elétrico de Dodô e Osmar, tocando “Atrás do trio elétrico”, e pensava em Caetano. Fui convidado a participar do programa do pianista Carlos Lacerda, “o governador do teclado”, na TV Bahia e fiz ao vivo uma ardente defesa do tropicalismo. No entusiasmo e na emoção, acabei dizendo o que não
podia mas que devia: que enquanto o Brasil inteiro cantava e se alegrava com a sua música, Caetano estava sozinho e triste preso no Rio de Janeiro. Foi uma comoção. Pouca gente na Bahia sabia que Caetano estava preso. Assim que o programa terminou, Carlos Lacerda me colocou no telefone para falar com dona Cano, mãe de Caetano, que estava emocionadíssima, como eu. Conheci seus irmãos Roberto e Rodrigo, fui a Santo Amaro da Purificação, me considerei da família. Passei o carnaval na Bahia, atrás do trio elétrico.

No Rio, depois do carnaval, fiquei sabendo que Caetano e Gil tinham sido libertados mas estavam confinados na Bahia, tinham que se apresentar na Região Militar todos os dias, não podiam trabalhar nem dar declarações, não podiam nada. Estavam com os cabelos curtos, Caetano muito triste, Gil muito mais magro, sem barba, de cara limpa e aspecto mais sereno: tinha se tornado macrobiótico na prisão, onde achava que ia ficar para sempre. Libertado de surpresa depois do carnaval, a caminho do aeroporto, percorrendo o Centro da cidade vazio, ainda com os restos da decoração carnavalesca, Gil começou a fazer o seu grande samba de alegria. E de despedida: “O Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo, o Rio de Janeiro, fevereiro e março, alô, alô, Realengo, aquele abraço, alô, torcida do Flamengo, aquele abraço, Chacrinha continua balançando a pança.”

1968 foi um ano terrível para Gil, Caetano e Chico, mas para Wilson Simonal e sua pilantragem foi triunfal. Um hit atrás do outro, cada vez maiores. Mais que um cantor, Simonal se afirmava como um entertainer, que divertia a platéia e a fazia cantar com ele, que contava piadas entre uma música e outra. Do início ao fim dos shows, o público cantava com ele seus sucessos populares, obedecendo alegremente a seus comandos. Quanto mais o público participava cantando, mais aplaudido era o show no final. E Simonal concluía que o público gostava mesmo era de aplaudir a si mesmo, sua própria performance. E que muita gente estava ali pagando não apenas para ouvir, mas principalmente para cantar.

“Vamos lá, alegria! Alegria! Todos comigo, aqui na mão do maestro! Metade do auditório faz ta-ta-tata e metade faz to-toto-to, todos comigo, 1-2-3!”, Simonal comandava. E o público obedecia, feliz, nos teatros superlotados. “Em casa de saci uma calça dá pra dois” era uma de suas máximas favoritas. E o público explodia de rir. “É tamanco sem couro: pau puro!”, era outra. “Malandro é o gato, que não vai à feira e come peixe; malandro é o sapo, que não tem bunda e senta”, dizia ele cheio de suingue e malandragem, o público ria e ele emendava com mais um hit. Como a nova — e sensacional — de Jorge Ben, “País tropical”. “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza (mas que beleza), em fevereiro (fevereiro) tem carnaval (tem carnaval), tenho um fusca e um violão sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza.”

O Brasil cantou com Simonal. A música de Jorge agradava a gregos e baianos, com um poderoso arranjo de César Mariano tipo “metais em brasa, com molho”, o irresistível balanço dançante do Som Três e uma grande performance de Simonal. Mas mesmo assim provocou polêmica: no momento mais feroz da ditadura, em pleno terror, com tantas prisões e torturas, sob a mais truculenta censura, não se podia nem devia cantar o Brasil dos militares daquele jeito, com aquele amor ufanista, como os sambas-exaltação de Ary Barroso (entre eles “Aquarela do Brasil”), associados com o Estado Novo getulista. O país estava pegando fogo, não havia mais meios-termos: quem não estava contra — então estava a favor. Jorge Ben, como sempre, ficou na dele: depois de uma fase de transição entre a MPB e a “música jovem” e vice-versa, depois de se eletrificar e dar peso sonoro de rock aos seus sambas, antecipando algumas das principais propostas musicais do tropicalismo, Jorge solidificou seu estilo e detonou uma saraivada de hits como “Que pena”, “Zazueira” , “Cadê Tereza”, “Que maravilha” (com Toquinho) e — o maior de todos — “País tropical”. Os tropicalistas adoravam Jorge Ben, que tinha sido banido da MPB por tocar guitarra e cantar na “Jovem guarda”, porque ele fazia o que eles queriam fazer, em termos de ritmo, de síntese, de liberdade. E mais: valorizaram as letras de Jorge, desprezadas como pueris e primitivas pela MPB universitária e literária, mas celebradas pelos baianos pela sonoridade de suas palavras, pelo ritmo de suas sílabas e rimas, pela liberdade e originalidade de suas abordagens do cotidiano. As letras de Jorge não eram literárias, eram musicais. Suas palavras eram puro som, diziam o que soavam.

Sua música ia além do samba e do rock. Nada mais tropicalista. Depois do AI-5 a minha coluna acabou e Samuel me propôs fazer uma página por semana, com muitas fotos e ilustrações. E textos mais leves, mais internacionais. Porque a coisa estava feia. Prometendo a Samuel uma série de reportagens sobre a explosão da juventude americana, voei para Nova York. Assim que cheguei telefonei para Sérgio Mendes na Califórnia e ele me convidou para acompanhar sua turnê pelos Estados Unidos com o Brazil 66. Me mandou uma passagem de avião de primeira classe, para ir encontrá-los em El Paso, no Texas, de onde seguiria com eles por mais dez cidades, a bordo de um avião fretado. Do frio de final de outono em Nova York cheguei eufórico à canícula texana e fui recebido no aeroporto por Sérgio e Flávio Ramos, ex-dono do Au Bon Gourmet no Rio e que se tornara seu secretário nos Estados Unidos. Sérgio era um big sucesso, vendia milhões de discos, tocava no rádio, aparecia na televisão, dava entrevistas nos jornais, se apresentava em ginásios abarrotados.

Mesmo sabendo de tudo isto, levei um susto à noite, quando entrei num enorme ginásio superlotado de jovens para ouvir Sérgio Mendes e o Brazil 66. Como abertura apresentava-se o Bossa Rio, produzido e empresariado por Sérgio, com músicos brasileiros e Pery Ribeiro e Gracinha Leporace nos vocais, cantando em português e em inglês. Depois, um comediante americano sem graça, que contava 15 minutos de piadas antes do show principal. O público vibrava com os hits de Sérgio, com o charme e as vozes de suas cantoras, entendia aquela linguagem musical que parecia ao mesmo tempo exótica e familiar, popular e sofisticada, jazzística e tropical. Ao final, uma standing ovation de 15 mil jovens texanos, fascinados com a alegria, a fluência e o ritmo do niteroiense Sérgio e seu pessoal, grandes músicos como o baterista Dom Um Romão, o baixista Tião Neto e o percussionista Rubens Bassini, alvo de inveja geral porque namorava Karen, a louraça. Na manhã seguinte, partimos para Amarillo, a duas horas de vôo mas ainda no Texas, a bordo do Viscount de 60 lugares fretado para a turnê triunfal. No avião, igual aos que faziam a ponte aérea Rio-São Paulo e apelidado por Sérgio de “Rodolfo”, viajavam o Brazil 66, o Bossa Rio, o comediante americano, o pessoal da produção o convidado. Uma festa nos ares. Com tanto sucesso e conforto, o bom humor era geral, mesmo de manhã. Sérgio divertia-se com os nomes esquisitos das cidades americanas — como Tampa, na Flórida, ou Mesa, na Califórnia — e inventava outros, pronunciados com sotaque radiofônico americano, como “Pentello, Texas”, ou “Cancro, Arizona”, às gargalhadas.



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